Em histórias de nosso cotidiano, apresentamos a derradeira entrevista de José Gonçalves, concedida ao nosso grande amigo Luiz Eduardo Caminha
Blumenau, 20.03.2010
Preâmbulo:
Esta foi, sem dúvida, a última entrevista concedida por José Gonçalves. Entrevistei-o para conhecer mais deste grande blumenauense, meu amigo. Em especial de tudo o que ele vivera e conhecera sobre os Stammtische. O Objetivo principal era trazer subsídios para o livro de minha autoria que estava em fase final de redação “Stammtisch, re-inventando tradições”, cujo lançamento ocorreu em 21 de Outubro de 2010. Tanto assim o foi que a parte da entrevista em que José Gonçalves trata desta tradição germânica em Blumenau foi toda publicada no próprio livro.
Mas havia um outro motivo. Uma surpresa que eu queria fazer, após o lançamento do livro, a este grande personagem da história de Blumenau. A ideia era publicar a entrevista completa na Sessão “Mérito Stammtisch” de meu Site “Stammtisch, Confrarias e Patotas”.
Agendamos e transferimos o compromisso por três ocasiões. Em seu último livro “Memórias de meu viver”, José Gonçalves ainda registrou que eu lhe telefonara para uma entrevista sobre o tema “Stammtisch” e discorre algumas experiências vividas sobre a tradição. Em 20 de Março, gravador em punho, a entrevista aconteceu. Conversamos por quase duas horas, na varanda de sua casa no Bairro Bela Vista. Foram momentos de muitas lembranças, histórias e emoções.
Seu “Ze´” estava radiante, feliz em estar trabalhando na re-edição do livro “Espelhos da Alma”, por solicitação da Rede Record, com amplas possibilidades de vir a se transformar numa novela. Manifestou o desejo de continuar a viver mais um pouco, até que publicasse dois outros livros em que estava também trabalhando. Contou muitas coisas, entre tantas, uma surpresa: foi um dos fundadores do Moto Clube de Blumenau.
Infelizmente José Gonçalves não viu a entrevista publicada parcialmente em meu livro e, muito menos, a entrevista completa cuja homenagem eu preparava. Acabou nos deixando poucos dias antes do lançamento do livro.
Mas a dívida ficou. No começo, fiquei constrangido em publicar a homenagem no Site. Agora, passados nove meses de sua partida, faço-o como forma de gratidão a um dos personagens mais vibrantes e atuantes que conheci nesta minha passagem por Blumenau. Em homenagem ao escritor e incansável defensor da cultura desta cidade. E, sobretudo, em homenagem aos inúmeros e incontáveis amigos que deixou, para que possam usufruir destas suas últimas manifestações em vida. José Gonçalves, se nada tivesse que ser dito a seu respeito, notabilizou-se por ser uma pessoa que a vida ensinou a bravura, o destemor e a sabedoria de saber ouvir. Era um mestre da vida e da paz.
Um eterno conciliador. Um sábio.
Nome: José Gonçalves
Nasc.: 31.12.1919
Local: Sertão do Ilze que pertencia, na época, ao Distrito de Indaial, município de Blumenau.
Falecimento: 01.10.2010, em Blumenau, aos 91 anos.
Caminha: Quem é José Gonçalves, por José Gonçalves?
José Gonçalves: Sou o que sempre fui, um batalhador de Blumenau que sempre lutou pelas boas causas que se realizaram em nossa cidade. Fui sempre um ativo participante de diversas iniciativas de nossa cidade, que cito no meu 6º. Livro que acabo de publicar “Memórias de meu viver”, como salvar o vapor Blumenau que hoje está na Prainha, participar da Codevi – Comissão de Defesa do Vale do Itajaí, da qual fui Secretário Executivo sob a Presidência do Coronel Moreira Lima, então Comandante do Batalhão. Nesta Comissão, eu me orgulho muito de ter participado junto com o Coronel e outros companheiros e conseguir realizar nosso principal objetivo que era a Construção das três barragens que estão aí hoje para ajudar a resolver o problema das enchentes em Blumenau.
Caminha: Eu lhe conheci ocupando o cargo de Diretor da Fundação Cultural de Blumenau. Como foi a sua experiência à frente da Fundação.
José Gonçalves: Quando assumi eu aceitei um desafio que me foi feito pelo Renato Vianna, então Prefeito da cidade, para colocar aquilo mais ou menos nos eixos porque andava meio desamparada. O outro desafio foi porque eu tinha que me transformar efetivamente em jornalista e pesquisador. Eu já praticava o jornalismo, mas não tinha experiência como pesquisador e isto me fez prender muito porque eu consegui editar a Revista Blumenau em Cadernos, que o Ferreira (José Ferreira da Silva) fundou, por um período de 18 anos enquanto administrava a Fundação. Mas os dois maiores desafios que eu enfrentei lá foram as enchentes de 1983 e 1984, quando perdemos só em 83, vinte e cinco mil arquivos entre livros e revistas dispostos na Biblioteca que havia ali. Além disso, nos vimos com a obrigação de construir o prédio da Biblioteca porque a outra se desmontou inteira com a segunda enchente (1984). E isso eu consegui. Dois anos depois da enchente, em 1986, conseguimos inaugurar a Biblioteca que até hoje lá está. Foi uma vitória conseguida não só por mim, mas por todos os blumenauenses que colaboraram com recursos. Todos achavam que eu não conseguiria ergue-la por menos de 2,5 milhões de cruzados novos e eu consegui entrega-la toda edificada, com todos os equipamentos internos pela quantia de 1.753.000,00 cruzados novos.
Caminha: Quantos anos à frente da Fundação?
José Gonçalves: Eu fiquei lá de 1977 a 1996.
Caminha: Conversando com historiadores, com pesquisadores a opinião é unânime: a Fundação Cultural de Blumenau contém um dos maiores acervos brasileiros sobre a história da colonização alemã e das tradições alemãs. O Senhor concorda?
José Gonçalves: Exatamente. E não é só a Biblioteca. O Arquivo Histórico, eu acho que não existe no Estado de Santa Catarina e talvez nem no sul do Brasil existe um Arquivo Histórico tão perfeito, tão completo como nós temos em Blumenau, que registra com documentos e inúmeras fotografias tudo o que aconteceu ao longo dos anos que se iniciaram em 1850 a partir da fundação de Blumenau. É uma verdadeira obra com uma riqueza de detalhes, uma fortuna histórica que a maioria dos blumenauenses nem conhece. Eu recomendo até que cada cidadão blumenauense vá conhecê-lo, passe um dia todo no Arquivo, para ver um pouco do que existe lá.
Caminha: As principais fontes de minhas pesquisas sobre Stammtisch e as tradições em Blumenau foram o Arquivo Histórico, a Biblioteca Municipal e o Blumenau em Cadernos do qual eu sou fã e assinante. Graças a Deus que a iniciativa do Blumenau em cadernos, do historiador José Ferreira da Silva, teve pessoas como o senhor e a professora Suely Petry para dar continuidade para esta obra que é uma referência da história de nossa gente.
José Gonçalves: Sem dúvida alguma. O Arquivo Histórico não só atende os interesses do blumenauense em suas pesquisas como também a muitos pesquisadores do sul do país que aqui vem, em Blumenau, para efetuar suas pesquisas. Aqui encontram informações que raramente encontram em outro local. E há que se contar ainda aquele terrível incêndio de 1958 que queimou uma quantidade grande de documentos. Mas mesmo assim ainda se conseguiu recuperar muita coisa e o Ferreira, neste pormenor, teve um trabalho extraordinário. Em boa hora ele fundou a Revista Blumenau em Cadernos, em 1957, que já completou seus 50 anos de circulação. Infelizmente, face a dificuldades financeiras a Revista está circulando a cada dois meses, mas existe material suficiente apara publicá-la mensalmente. A Suely, neste processo, tem sido de fundamental importância para continuidade das iniciativas do Ferreira e da própria Fundação.
Caminha: E vez por outra o senhor ainda nos brinda com seus artigos...
José Gonçalves: É. Eu deixei, quando sai da Fundação, um acervo muito grande, para ser publicado na própria Revista. Como eu disse, eu me propus a ser um pesquisador quando entrei na Fundação e lá mesmo eu me enriqueci muito, aprendi muito. Como eu digo a meus amigos, nós seremos eternos aprendizes se quisermos aprender. E o Arquivo histórico ensina tudo aquilo que o povo não sabe.
Caminha: Bem, vamos falar do escritor José Gonçalves. Quantos livros editados e os títulos?
José Gonçalves: São seis livros, contando este último publicado no ano passado, Memórias do meu Viver”.
O primeiro foi “Ele Sobreviveu”, sobre a vida do Alfredo Wilhelm e o que ele passou como um brasileiro, na condição de soldado alemão, na 2ª. Guerra Mundial. O segundo é também sobre a 2ª. Guerra, a vida do Curt Max Lebrecht, que foi soldado das forças aliadas. Ele tem uma história fantástica porque era judeu, fugiu da Alemanha porque foi perseguido por Hitler, foi para os Estados Unidos, lá se naturalizou e logo em seguida foi convocado para o exército. Já no posto de cabo ele foi para a Inglaterra para ser treinado e participar da invasão da Normandia. Aliás, ele participou desta invasão. Esta história toda está neste segundo livro e duvido que alguém tenha descrito com tanta clareza aquilo que aconteceu naquela madrugada da invasão da Normandia, quando estava presente, naquele exército de vanguarda, o Curt Max Lebrecht. Ele quem me contou todos os detalhes que estão neste livro que se chama “O cidadão de três pátrias” com duas edições já totalmente esgotadas. O terceiro livro foi “Dico, sertanejo herói” que conta a história de outro participante da 2ª. guerra, mas agora na Itália, integrando a Força Expedicionária Brasileira, o Dico, que se chamava Hercílio Gonçalves, que era meu primo em 3º. Grau e que veio a falecer em Monte Castelo, em Novembro de 1944, durante a tomada de Monte Castelo. Neste livro eu romanceio a história do Dico e acrescento outros personagens fictícios para embelezar a história. Depois vem o livro que é o meu xodó “Espelhos Da Alma”. Todos os que o leram tinham a opinião de que este livro deveria se transformar numa novela porque ele contém todos os ingredientes necessários para se mostrar a força moral que um povo pode ter, desde que siga as normas da justiça da retidão, da humildade e da bondade. É por isso que estou trabalhando na sua 2ª. edição porque a TV Record, através de sua filial em Blumenau solicitou-me de formas a enviá-lo à sede da emissora em São Paulo a fim de estudarem a possibilidade de adapta-lo a uma novela. É o que estou me ocupando agora. Passando-o a limpo para gravá-lo, como exige a modernidade, num PEN-DRIVE (risos) de formas a envia-lo à Gráfica e Editora Odorizzi para que eles o imprimam. A capa do livro já está pronta. São coisas que estou vivendo.
Caminha: Então o senhor está revisando o livro e dando uma repaginada, não?
José Gonçalves: É isso. O livro foi escrito há 20 anos e estou dando uns retoques, melhorando-o um pouco. Bem, daí vem o 5º. Livro “O piloto e a rainha”, um livro curto, rápido de ler e muito agradável para quem gosta da aviação do passado, especialmente dos primórdios de nossa aviação naval. É uma história muito interessante que chega a revelar a existência de uma rainha de um povo que vivia há muitos anos atrás na Amazônia, e por fim este livro que acabo de publicar “Memórias do meu viver” que narra toda a minha vida desde os sete meses de idade gestacional, ainda no ventre de minha mãe. Lógico que desta época até os seis anos muitas coisas me foram relatadas ou relembradas por meus irmãos, como foi o caso da casa toda de palmito que meu próprio pai construiu. Agora ainda tenho outros dois livros que já estão prontos para irem para o tal do Pendrive. Um deles é “Folhas ao Vento”, um livro em que procuro emprestar meu apoio integral ao Agrônomo, um profissional sem um adequado reconhecimento e que pode fazer muito para a salvação dos problemas ecológicos que passamos, pela nossa Amazônia, pelo nordeste, e outros tantos que os governos sucessivos nunca tiveram a devida coragem de encarar. Se o governo apoiasse esse profissional e os enviasse para estes locais, com o devido apoio das forças armadas para protegê-los daqueles jaguaras de políticos que não querem ver nada daquilo resolvido. Este é um livro em que eu faço uma espécie de provocação sobre o assunto. Mas eu estou esquecendo de uma coisa importante neste que não tem estas conotações com a história, um livro não histórico, eu diria assim, algo que saiu da minha mente: seria o resultado desta ação destes profissionais que acabam por transformar todo o nordeste do Brasil e dar um fim nos absurdos que ocorrem na Amazônia.
Caminha: Quem sabe este livro não venha a servir como plano de ação para um governo no futuro?
José Gonçalves: Eu espero que estas coisas realmente ocorram. Quem sabe lá?
E, finalmente temos ainda um 8º. Livro “O passado em crônicas”, que publica as crônicas que escrevi no passado, quando eu era radialista e tinha o programa Revista Matinal. Foram mais de 370 crônicas, das quais eu escolhi aquelas que eu julgo importantes por guardarem uma conotação histórica com Blumenau.
Caminha: Considero que o alemão, via de regra, é mais reservado em fazer amizades. No litoral, quando você é convidado para ir à casa de alguém, você já é recebido na primeira ocasião pela cozinha, um lugar privado da família. O alemão convida recebe pela sala. Mas quando você lhe convence que veio para trabalhar, para edificar, que você é honesto, correto, ele escancara as demais dependências da casa como se você fizesse parte de sua família. Ou seja, quando ele se torna seu amigo é amigo mesmo.
José Gonçalves: Sem dúvida é isto mesmo. Ele pode ser reservado, um pouco desconfiado, mas o que ele quer é identificar bem a pessoa que está querendo ter o contato com ele, mas o elemento alemão é tão hospitaleiro como qualquer outro . E isto fez a fama da cidade ser hospitaleira. Ainda hoje, apesar do crescimento enorme, conhecendo Blumenau como nós conhecemos, nós podemos dizer que ainda vivemos num paraíso.
Caminha: Quando foi seu primeiro contato com um Stammtisch?
José Gonçalves: O primeiro "Stammtisch" que eu conheci lá pela década de 1947 foi aquele que eu frequentei e se localizava num bar e lanchonete existente no local em que mais tarde foi erguido o prédio em que se acha instalada a ACIB – Associação Comercial e Industrial de Blumenau. Naquele local, que era o térreo de uma casa de dois pavimentos, realizava-se costumeiramente e naturalmente quase todas as tardes, um encontro de jornalistas e radialistas que ali em redor de uma mesa, conversavam e trocavam ideias sobre tudo e todos, assim como analisavam as últimas noticias sobre esportes e outras mais.
Caminha: Eram muitos os participantes?
José Gonçalves: Lembro-me dos que mais frequentavam o local e que eram o João Vieira, poeta repentista muito popular pelo seu pseudônimo de "Mano Jango", Maurício Xavier, jornalista emérito e mais tarde diretor do jornal "A Nação", Luiz Reis, abalizado jornalista, Nilton Russi, editor da página esportiva de jornal "A Nação", Manoel Pereira Júnior, o popular Maneca da Radio, muito estimado e conhecido em Blumenau. Com mais raras aparições o Sebastião Cruz e o Cássio Medeiros também militantes da imprensa local, além de outros cujos nomes minha memória nega-se a fornecer neste momento.
Caminha: Mais alguma lembrança de outro Stammtisch?
José Gonçalves: O outro "Stammtisch" que eu conheci e frequentei foi c existente num restaurante situado à Rua Sete de Setembro, na quadra entre as ruas Ângelo Dias e a Nereu Ramos e parece-me que era conhecido como Restaurante Holetz. Ali, numa ampla mesa que não era na realidade redonda começamos, os motociclistas de Blumenau, a nos encontrar já na década de 50 e dessas reuniões quase que diárias, acabamos fundando o Moto Clube de Blumenau do qual, além de fundador, fui Secretário da 1ª. Diretoria e da Comissão Constitutiva do Clube. Desse grupo eu lembro o nome do Fritz Reimer, do Klever, que era funcionário das Gaitas Hering, Ivo Moes, Hans Mailer, Waldemiro de Oliveira, Ernesto Wetsch e do Paul Beimerche.
Também conheci e frequentei o Stammtisch que se reunia no varandão do Clube Náutico América, no tempo em que o Sebastião Cruz era o Presidente. Lá compareciam diariamente, ou quase todos os dias, além do Sebastião Cruz, o Paulo Hering, o notável defensor de nossa flora e fauna, Carlos Ubiratan Jathay, que mais tarde foi Presidente do Clube, um cidadão de sobrenome Otte (não lembro o primeiro nome), que era proprietário de uma fundição que fabricava tachos de cobre, ali na Alameda Rio Branco, o técnico da guarnição americana de remadores, cujo nome também não lembro e outros mais.
Caminha: Mas eu li, também, no Blumenau em Cadernos, de um Stammtisch que o senhor conhecia ou frequentava, onde participava o Senhor Augustinho Schramm.
José Gonçalves: Sim. Este se localizava na Churrascaria Palmital, ali na Rua Nereu Ramos. Foi ainda na década de 50 e eu também o frequentava. Ali se reuniam, os integrantes da Rádio Clube de Blumenau, principalmente o Flávio Rosa, eu, o De Maria e o Jenner Reinert.
Nesta mesma churrascaria também se reunia um outro Stammtisch cujos membros eram também meus amigos. Este foi o grupo que eu referi no Blumenau em Cadernos. Dele faziam parte o Augustinho Schramm, o Heinz Hartmann, Nilton Kiesel, Júlio Metzger. Eu também frequentava este grupo. Foram aqueles quatro, mais eu e o Flávio Rosa, os seis idealizadores do Bela Vista Country Club. Mas a este grupo também compareciam o Walter Klitzke, o Nicolau Eloy dos Santos, o José Ribeiro de Carvalho que também se associaram àquele grupo que deu início ao Bela Vista.
Caminha: O Senhor não perdia um grupo de Stammtisch, não? (risos)
José Gonçalves: Pois é. O Adolfo Ern, que era o proprietário da Churrascaria Palmital, comprou então um terreno na Rua 7 de Setembro. Construiu um prédio de dois andares e fundou lá a Churrascaria do Adolfo. Ele morava no piso superior e o Restaurante era embaixo. Com isto acabou-se o Stammtisch da Palmital e seus habituais frequentadores transferiram-se para o Restaurante Chinês, na Rua Quinze, defronte a Casa Flamingo, numa mesa redonda que era o nosso ponto de encontro. Ali o grupo cresceu muito, formou-se um outro quase só de brasileiros. O grupo ia crescendo e trazendo novos sócios para o projeto do Bela Vista. Eu lembro que eram muito agradáveis os fins de tarde ali no meio de tantos companheiros e amigos.
Caminha: E na Churrascaria do Adolfo?
José Gonçalves: Lá se formou um outro Stammtisch. Eu participei deste grupo algumas vezes, embora não diariamente e o fazia porque, pelo menos duas vezes por semana eu me encontrava naquele recinto com o saudoso amigo e companheiro do Rotary, Nilton Machado Vieira, tenente-coronel e comandante do 23º. Batalhão de Caçadores.
Estes foram os Stammtisch que eu frequentei em nossa querida cidade.
Caminha: Mas o senhor conhecia outros Stammtisch, não? Lembro que o senhor me falou a respeito de um que se localizava na Itoupava Seca. Aliás, o senhor cita em seu livro “Memórias do meu viver” a existência de um Stammtisch no Hotel Wüerges, ali no antigo Bairro Altona (hoje Itoupava Seca).
José Gonçalves: Sim, o Hotel Wüerges ficava defronte a sede do Jornal A Nação, onde trabalhei. Era pela segunda metade da década de 40. Seu dono, Sr. Wüerges, e toda a sua família era muito acolhedora. Eu frequentava muito o hotel porque lá havia um bar, dentro do próprio hotel, aonde eu ia com frequência fazer um lanche ou comprar alguma coisa. E eu via uma, às vezes duas vezes por semana, um grupo que sempre estava reunido ali. Talvez até houvesse mais grupos, porque sempre havia gente reunida lá. Mas um destes grupos era formado por pessoas que moravam ali por perto, cerca de 10 a 12 homens cuja idade já ultrapassava os 60 anos. Era um Stammtisch muito bonito, que estavam sempre conversando, alegres, jogavam “caneco” (também conhecido como general ou poker de dados). Naturalmente que só falando em alemão. Mas eles estavam sempre lá.
Caminha: Entre as características dos Stammtische atuais, além da mesma mesa, o mesmo lugar, os mesmos acentos etc, uma que se destaca é a irreverência. No bate-papo quase que diário ou semanal, além dos assuntos sérios da cidade, havia o famoso “jogar conversa fora” (como os alemães gostam de chamar para as piadas, os assuntos irrelevantes) e as brincadeiras, as gozações, enfim a irreverência no seu sentido de coisa trivial, fútil, banalidades. Talvez neste espírito é que tenha se forjado tanto compadrismo, eles se tratam como verdadeiros irmãos, não de sangue, quem sabe de cerveja. Nas suas lembranças isto também era comum nos grupos do passado?
José Gonçalves: Sem dúvida alguma. Era do hábito do alemão discutir muitos assuntos. Às vezes havia até divergências, de tal forma que se esta divergência fosse muito intensa, renitente, radical, eles se separavam. Aí, o grupo ficava lá e o um ou alguns iam formar um outro grupo ali mesmo, no mesmo ambiente, ou em outro lugar. Assim como aconteceu com os Clubes de Caça e Tiro que, no fundo, se formos buscar bem, quase todos começaram com um grupo que se caracterizava como um Stammtisch. Não todos. Mas depois do primeiro, que hoje é o Tabajara Tênis Club, o que aconteceu foi isso. Hoje nós temos cerca de 35 Clubes que se formaram fruto da teimosia do alemão em querer fazer a coisa bem feita. Quando começava a surgir divergências na diretoria destes Clubes, a metade saia pra formar um outro Clube de Caça e Tiro.
E assim aconteceu de, naquela época, proliferarem os Stammtische de Blumenau.
Caminha: Há até uma piada que diz mais ou menos o seguinte: na época que começaram a proliferar as Schützenverein, dois alemães se reuniam e formavam uma Schützenverein. Se três alemães se reunissem, sairia, em pouco tempo, duas Schützenverein e assim por diante.
José Gonçalves: Sim, é mais ou menos isso e tudo vem desta cultura de procurar fazer o mais certo possível. Procurar sempre a perfeição.
Caminha: Para finalizar vamos falar de um período sempre citado como um trauma para a cultura germânica no Brasil. Falo da Era Vargas. Nas pesquisas que fizemos nota-se claramente que houve uma espécie de apagamento da memória alemã, de alguns costumes, algumas tradições, entre elas o Stammtisch. Foram levadas de rodo pela xenofobia daqueles anos. O que o senhor pensa desta época?
José Gonçalves: Bem, eu penso que se dependesse do próprio Getúlio Vargas nada disto teria acontecido. O que havia era uma política nacionalista que foi aproveitada por algumas pessoas que tinham o poder na mão e praticaram algumas vinganças, algumas crueldades contra os filhos ou descendentes dos alemães, dos italianos e dos japoneses. Mas eles nunca tiraram do coração de ninguém esta vocação, este desejo, de se reunirem, sentarem em torno de uma mesa como faziam nos Stammtisch. Muito parecido com o que agora está acontecendo.
Caminha: Como o senhor avalia esta re-invenção do Stammtisch e os Encontros de Stammtisch, a Strassenfest mit Stammtischtreffen, como ferramentas de resgate desta tradição?
José Gonçalves: Sem dúvida alguma, tudo o que se faz para resgatar o passado e os hábitos trazidos da Europa desde a época dos colonos, tem um valor inestimável. Isto que se está fazendo em Blumenau é muito importante para reavivar esta tradição que andava apagada da memória, assim como outras que a gente vê nestes Encontros da Rua 15. Naquela época do nacionalismo, não se podia falar alemão e, portanto, não se podia falar a palavra Stammtisch, mas isso passou e agora vemos isto renascer a até nas escolas já se sabe o que isto significa.
Caminha: Bem, como última questão, além desta vida toda que o senhor passou, por todas as coisas que o senhor esteve ombreando seja à frente seja lado a lado, além dos 6 livros, da re-edição do Espelhos da Alma, dos dois outros que estão lá aguardando um Pendrive, além dos 90 anos bem vividos, com toda esta lucidez, posso arriscar que exista um projeto para o senhor chegar aos 100 anos ou há ainda algum outro projeto futuro?
José Gonçalves: Não! O meu projeto futuro agora é viver né (risos). Pra isto eu tenho que cuidar de mim mesmo. Cuidar da minha carcaça (risos). Como diz o meu médico “Olha, Gonçalves, você não pode querer viver como se fosse um jovem de 60 ou 70 anos, você tem que pensar que já tem 90 anos”. Eu até aconselho meus amigos a aprender a viver com a idade que eles têm, mas às vezes eu esqueço disso. Dia desses, eu esqueci deste pormenor e acabei no hospital. Mas eu me cuido, na esperança que Deus na sua eterna bondade, como fez comigo me trazendo em suas mãos até esta idade, me deixe viver um pouquinho mais para ver todos estes meus livros publicados. Aliás, em todos os meus livros, em tudo o que fiz e faço, eu agradeço a Deus, presto-lhe uma homenagem, e sugiro às pessoas que também acreditem em Deus.
Caminha: Seu recado final a todos aqueles que lhe admiram e lhe querem tanto, alguns como o Vasco, entre outros.
José Gonçalves: (Eu também gosto muito do Vasquinho). Sabe, eu agradeço todos os dias por esta herança. Por ter tantos amigos, em todos os lugares que vou. Gente que se aproximou de mim por causa de algumas sementes que eu plantei. Gente que até vem a mim para dizer que eu sou uma personalidade especial. Eu não sou nada disto. Eu apenas aprendi a viver e a conviver e é isto o que desejo a todos que vierem a ouvir ou ler esta entrevista. Tratem bem o seu semelhante Se não puderem fazer um algo mais, dêem um abraço bem apertado no amigo quando o reencontrar ou mesmo naquele que, não sendo seu amigo, seja seu conhecido, porque num aperto de mão ou num abraço que se dê em alguém nós estamos dando um pouco de nós, mas também estamos recebendo um pouco de quem apertamos a mão ou abraçamos. E isto é muito bom. Provoca um sentimento de amizade muito agradável além de começar a desenvolver um sentimento muito grande de bondade em seu coração. Além disso, eu recomendo a todos que conduzam Deus em seu coração e estarão sempre muito bem amparados.