Em histórias de nosso cotidiano
apresentamos hoje duas crônicas da senhora Helga Erbe Kamp.
Marga Helga Erbe Kamp nasceu
em Brusque no dia 13 de março de 1932. Estudou canto lírico e línguas
estrangeiras e é diplomada em Inglês pela Cambridge
University e Southern
Illinois University. Primeira franqueada
do Instituto de Idiomas Yázigi em Brusque, em 1969, e Blumenau, em 1980, ensinou inglês de 1966 a 1997. Após
aposentadoria, é tradutora do inglês, francês e alemão para o vernáculo, em
conjunto com seu marido, Ernst Otto Kamp.
É autora de Micki -
Passagens e Paisagens de minha vida – crônicas autobiográficas, publicado
em 2012.
Atualmente dedica-se à
criação de novas crônicas, bem como à pesquisa e organização de documentos
históricos da família.
NA PRÉ-ESTREIA DA ÓPERA
ANITA
Minha
amiga Inge Schelling e eu não
perdíamos um único espetáculo ou concerto no Teatro Carlos
Gomes
nos anos em que éramos colegas de ginásio em Blumenau,
até o ano de 1947.
Para
o ano seguinte, os seus pais decidiram matriculá-la no curso de Economia
Doméstica em Novo Hamburgo, enquanto
eu optara - ou foi a proposta de meus pais - pelo Curso Colegial no Colégio Santo Antônio.
Em
1950, contudo, eu já estava
estudando no Colégio Estadual do Paraná.
Por quê? Porque este colégio recém-inaugurado me atraíra por oferecer uma
piscina olímpica! E eu via ali a possibilidade de desenvolver meu sonhado
potencial de nadadora! Mas, a
comemoração do Centenário de Blumenau foi razão suficiente para que Inge
e eu estivéssemos em Blumenau durante aquela semana de festejos.
E,
era lógico que fôssemos assistir ao ensaio geral, na véspera da estréia. (Embora
não me recorde de ter assistido à estreia no dia seguinte, 2 de setembro.)
Imaginem!
Uma ópera sobre a história de uma heroína catarinense, composta pelo Maestro Geyer, dirigente da
Orquestra Sinfônica do Teatro Carlos Gomes local! Ela iria ter a sua
gloriosa estréia em Blumenau, no próprio dia em que se comemorava o centenário
de sua fundação!
Foto Blumenau Antigamente em Blumenau, de Fritz! Danke, Fritz
Mas,
voltando ao assunto do título deste relato: A Ópera Anita era uma obra grandiosa, suas melodiosas árias, nascidas
dos delírios do maestro e compositor Heinz Geyer, então dirigente da Orquestra
Sinfônica do Teatro Carlos Gomes. O roteiro baseava-se em literatura existente
sobre o aventureiro Garibaldi e sua valente companheira, Anita de Jesus, a
“heroína de duas pátrias”.
O
Maestro havia conseguido contratar como diretora artística Alícia Pincherle,
renomada empresária teatral de São Paulo.
Se me recordo bem, ela havia nascido na Croácia,
crescera e casara em Trieste, transferindo-se com seu esposo e seus dois
filhos para o Brasil, no início da Segunda Guerra Mundial.
Quatro
anos depois, em 1953, quando eu já
trabalhava na Exprinter Turismo, na movimentada Rua Barão de
Itapetininga na capital paulista, ela me havia sido indicada como a melhor
professora de canto lírico em São Paulo. De pele alva e faces rosadas, um corpo
de matrona. Os longos cabelos de um cobreado que lembrava as voluptuosas
figuras femininas das telas de Ticiano,
presos em uma grossa trança!
Como
sua aluna, eu não só conheci e cheguei a ver sua filha Nydia Lícia como atriz dramática no palco do teatro Sérgio
Cardoso – essa casa de espetáculos tinha o nome do
seu marido, um então aplaudido, intérprete de Hamlet de Shakespeare – ela nessa hora como poderoso soprano
dramático, interpretando “Gretchen am
Spinnrade”, um dificílimo Lied de
Schubert. Com merecido orgulho, Dona Alícia me contou que sua filha havia, há
alguns anos, tido a oportunidade de cantar para o então maior tenor operístico
do mundo, Bengiamino Gigli.
O
filho de Dona Alícia, Lívio Túlio, era psiquiatra. O seu marido,
radiologista. Na época, com dedos terrivelmente deformados, já então vivia numa
cadeira de rodas.
Atores
e atrizes eram discípulos de impostação de voz e dicção de Dona Alicia. Lembro
ter assistido aulas dadas por Dona Alícia aos famosos nos palcos paulistanos da
época. Lá estavam John Herbert, Eva Wilma, a ‘musa’ da época, Cacilda Becker e
sua irmã, Cleide Yaconis. Devo à exigente professora
a habilidade que também a mim foi útil mais tarde, não só como cantora, mas
também como professora de inglês que fui durante quase trinta anos.
Pois
então: Em 1950 a
montagem cênica de "Anita" fora obra de Da. Alicia Pincherle como diretora
artística. Meu primeiro professor de
canto lírico em Blumenau, Lubo Maciuk, havia assumido o papel do herói
Garibaldi, enquanto Norma Cresto interpretava a valente guerreira, a heroína
Anita. (Lubo Maciuk era tenor, não? Garibaldi,
um tenor? Estranho...) A jovem soprano blumenauense Leonor Lídia Fuchs fazia o
papel de Maria da Glória, a confidente
de Anita. A sua voz era muito bonita, contudo percebia-se que era delicada
demais para a acústica do amplo auditório do Teatro Carlos Gomes que pouco corroborava
com o transporte do volume de sua voz tão meiga.
O
filho psiquiatra de dona Alicia, Lívio Túlio, pelo contrário, enchia o ambiente
com sua poderosa voz de barítono. Hoje
sei que Vitor Bona e Caetano de Figueiredo, ambos conhecidos meus,
interpretavam figuras do “casting”, lembrança que me escapara.
Por
outro lado, lembro perfeitamente daquela noite da pré-estreia: o maestro e Da. Alicia
correndo de lá para cá, a orquestra interrompendo a execução em alguma parte,
aguardando que o maestro ou Da. Alice dessem suas instruções do que deveria ser
corrigido ou melhorado. A platéia - lembrando-me especificamente de Da. Eva
Gross Schelling, mãe de minha amiga Inge,
ao lado das Sras. Paul e Vitor Hering
- aos cochichos e risadinhas discretas, observando e trocando comentários de
todas as nuances.
Ao
fim das três, em vez de duas horas, até nós duas adolescentes não tínhamos
muita certeza sobre a esperada e desejada longevidade da ópera. Eu,
pessoalmente, apenas me lembro da delicada Ária
"Anita, oh doce Anita",
cantada por Maciuk.
Maestro HEINZ GEYER
Quem sabe, talvez hoje “Anita”, com alguns retoques, com a evolução da arte operística, cênica,
de dramaturgia, acústica e de sonografia, conseguisse um público que aplaudisse
entusiasticamente uma apresentação esmerada. O roteiro e a própria obra bem o
mereceriam.
Contudo,
desconheço algum esforço nesse sentido, para ressuscitar esta obra memorável do
Maestro Heinz Geyer.
Em
1985, por ocasião de nossas bodas de
prata, lá veio a amiga Inge
com uma maravilhosa coroa de flores do campo para eu usar sobre minha cabeça
aquela noite! A comemoração da grande data festiva não teria sido a mesma, sem
aquela demonstração de afeto e dedicação da amiga de longa data.
Em março de 1992 eu estava comemorando os meus 60 anos. É claro que minha fiel amiga também chegasse de Blumenau
para a festa. (Ela havia se casado com Igor von Hertwig, meu colega de classe
no Colégio Santo Antônio) Em 1968 havia caído sobre ela a escolha para batizar
nosso quarto filho – e que madrinha dedicada foi!
Naquele dia 13 de março ela trazia nas mãos
uma enorme torta de mocca - a sua especialidade
com o número “50”
caprichosamente desenhado em letras de chocolate sobre a cobertura da apetitosa
torta.
-
Tia Inge, mas mamãe faz sessenta anos hoje, e não cinquenta! Observou nossa
filha Anja.
-
Eu sei, mas faz cinquenta anos que sua mãe e eu nos conhecemos durante a
temporada de verão em Cabeçudas. Portanto, esta torta quer lembrar que estamos também
comemorando os cinquenta anos de nossa amizade.
Amiga
fiel e querida!
A
saudade me aperta o coração.
Pois Inge foi, já poucos anos depois, viver em outras dimensões.
No
sótão de Tante Nanny.
09/05/2013
No
ano de 1949 eu cursava o primeiro ano do Curso Científico, isto é, o nono ano
do segundo grau, no Colégio Santo
Antonio em Blumenau,
dirigido pelos Padres Franciscanos.
Tante
Nanny era a irmã da
avó de minha grande amiga Inge, a escritora de romances Gertrud Gross, e autora de peças teatrais que costumavam ser
apresentadas no teatro Frohsinn
antes do ano de 1937.
Tanto
Tante Nanny Poetig, como Frau Gross, eram da segunda geração dos
Hering, cujos membros habitavam vistosas mansões na Rua Bom Retiro.
A
septuagenária Tante Nanny
compartilhava a mansão de três pisos com uma senhora de idade semelhante, a Frau Liese.
Não
me recordo através de que passos diplomáticos da mãe de minha amiga Inge, filha
de Gertrud Gross, eu fui aceita como pensionista pela Sra. Poetig.
A
sua casa nesta rua ainda lá está, entre uma série de vistosas mansões da Belle Époque. Todas elas, naquela época, propriedades da
segunda geração dos pioneiros Hering,
No
terceiro andar da casa então habitada por Tante
Nanny pode se ver uma grande torre envidraçada que acabou sendo o meu quarto
enquanto pensionista.
O
lavabo e banheiro se encontravam no fim do corredor escuro (principalmente à
noite!) do segundo andar.
Num
pequeno quarto ao lado do meu, contudo, havia uma estante com bacia, jarra e
balde, além de um penico, peças importantes para a minha higiene
particular.
A
empregada doméstica ocupava um quarto à esquerda do meu.
No forro do meu quartinho da torre haviam-se alojado algumas famílias de
ruidosos morcegos. Após me queixar de que perturbavam um bocado o meu sono
noturno, dois empregados da Cia.
Hering tiveram sucesso em afastar os indesejados inquilinos do forro.
Antiga Maternidade Johannastift
Dos
180 graus envidraçados da torre tinha-se uma bela vista para as altas
palmeiras, o bem cuidado jardim com seus canteiros de roseiras e gérberas, a
casa construída por Curt e Johanna
Hering (a que patrocinou a edificação do Johannastift, onde eu nasci a 13 de março de 1932) à
direita. E do outro lado da rua, a casa construída por Paul Hering para a sua família. À esquerda da casa de Tante
Nanny, ficavam as residências de Gertrud
Hering Gross e de seus filhos, Ralf Gross, Hildegard Gross (Hans) Kegel
e Eva (Max) Schelling.
Um
grupo teatral vindo da Alemanha
havia anunciado a sua pretensiosa apresentação da primeira parte do drama Dr.
Faustus de Goethe, no Teatro Carlos
Gomes.
A
alta sociedade blumenauense, após o jejum imposto não somente pela Segunda
Guerra Mundial, mas já pelos anos após a nacionalização em 1937, avidamente
queria aplaudir os atores, mesmo que tivessem dificuldade em entender
totalmente a mensagem contida nessa profunda obra de Johann Wolfgang von
Goethe.
Muitas
famílias blumenauenses ofereceram receber os vários atores como hóspedes em suas residências.
Sobretudo todos os Hering. E Tante Nanny mereceu receber em sua casa o ator principal e sua
companheira. Esta, acometida de uma forte rinite, em consequência da inusitada
umidade do clima blumenauense.
É claro que Inge e eu fomos ao
espetáculo. Faceiras, como sempre, de camarote, naqueles reservados para os
mecenas Hering.
Naqueles
dias eu fui testemunha, quando Tante
Nanny, à mesa do almoço, mencionou a história de sucessos teatrais nos bons
tempos do Frohsinn, revelando
que, com o encerramento das atividades desta casa de espetáculos, todo o guarda-roupa,
espadas, lanças, além de outras armas, armaduras, peças de cenário e tudo o
mais, haviam acabado sendo guardados numa parte de seu sótão.
A
visível demonstração de curiosidade do intérprete do Dr. Faustus fez com que Tante Nanny se dispusesse a levar o ator
- e esta jovem pensionista não menos curiosa - até um misterioso quarto no
sótão, até então sempre trancado a chave. Nele se viam, bem protegidas por
velhas cortinas e lençóis, as testemunhas da gloriosa história do “Frohsinn”. Eram perucas, espadas,
lanças, coroas, trajes, luvas, sapatos e botas e não sei o que mais.
E, ao que hoje chamariam de crime
contra o patrimônio cultural e histórico de Blumenau, aconteceu neste momento: Tante Nanny ofereceu - sendo sua generosidade aceita imediatamente
com visível prazer - doar todo o acervo existente naquele quarto de seu sótão
ao presunçoso intérprete de Dr. Faustus de J.W. von Goethe.
PÓS-SCRIPTO
Nos
domingos à tardinha, após o fim de semana com a família em Brusque,
quando um ônibus do Expresso Brusquense já me havia devolvido a Blumenau
para a próxima semana de aulas no colégio, Tante
Nanny me aguardava, sentada em sua confortável sala de estar, ao lado do piano,
no qual esta, não muito talentosa aluna de Da.
Geninha Tavares, tinha que praticar diariamente durante algumas longas
horas. Faz parte de minhas memórias que a tão gentil e compreensiva Tante
Nanny, naqueles fins de domingo sempre encerrava o dia, estendendo-me um
delicioso ‘Sonho de Valsa’ da
Lacta.
Helga Erbe Kamp
Arquivo de Carlos Braga Mueller/ Adalberto Day