Histórias de nosso cotidiano
«-Recordações de Niels Deeke-»
Excerto da obra inédita : “ Águas Passadas, Algumas Límpidas, Outras Nem Tanto....”
Familie Wappen
DEEKE “Nec Plus Ultra”
“ Natura non facit Saltum ”
NIELS DEEKE
Fazenda Deeke
EPISÓDIOS REAIS
Singular experiência vivida por Niels Deeke.
Decorria o mês de agosto ano de 1959, período em que eu morava numa casa junto ao mar, sita à rua Santa Luzia, no extremo norte da “Ponta do Leal”, praia do “Balneário”, limite dos bairros Estreito e Barreiros em Florianópolis, não muito distante da “Escola de Aprendizes de Marinheiros”, uma unidade do Ministério da Marinha. Adquiri a moradia do Dr. Abelardo Gomes, Procurador da República em Santa Catarina, que então tinha seu escritório no 5º andar do edifício “Ipase” em F’polis e era também catedrático da Faculdade de Direito de Santa Catarina , numa Cadeira do 5º ano do curso, e que por sua vez adquiriu o imóvel de seu parente, o Dr. Aderbal Ramos da Silva.
Na época, na periferia, muito poucos vizinhos havia e depois de reformá-la, construí um prédio menor para abrigar o meu Jeep e conter meu equipamento de pesca. A fim de construir a garagem, adquiri o terreno contíguo, ao norte, do Sr. Roberto Müller, proprietário da “Joalheira Müller”, cuja parente Dª Natércia Müller, então funcionária da Prefeitura de Florianópolis, deu-me uma providencial “mão” na regularização de registros, cadastros e impostos que estavam há longa data vencidos, e ainda depois de avançar com o terreno sobre o mar, mediante a construção de um muro com ciclópicas pedras de granito assentadas sobre a estreita faixa de praia, aterrando todo o vão, no qual deixei uma rampa em concreto para tracionar embarcação, em cuja abertura fixei um portão, mudei-me para aquele ermo, lá residindo solitário, até casar-me em novembro de 1959.
O avanço, de cerca de doze metros mar adentro, por outros setenta de extensão, que procedi sobre as “terras da marinha”, interrompendo a livre passagem do público pela praia durante as marés média e alta, causou-me bastante aborrecimento. Denunciaram-me, justificadamente, ao “Serviço do Patrimônio da União” e Prefeitura Municipal e, muito não faltou para que determinassem a sua demolição, não fosse a amizade e benevolência do então Diretor do “SPU” em Florianópolis, o Dr. Gilberto Fontoura Rey, que chamando-me para explicações, resolveu “fechar os olhos”, quando me garantiu que, no mínimo, durante a sua gestão a questão permaneceria pendente, pois apesar da ilegalidade da obra, compreendia sua utilidade e beleza arquitetônica e como houvesse certo respaldo pelo pagamento que efetuei em “laudêmios” e “foros”, sem bem que não obtivesse o “aforamento definitivo”, enfim fui constituído “enfiteuta”. Visitando aquelas paragens em 1993, constatei que o muro ainda lá estava, tão firme quanto o construí.
Pois bem, num dia do mês de agosto, estando meu tio Raul Deeke em Florianópolis para tratar da regularização das terras cuja aquisição intentava no Alto Palmeiras- mais tarde “Fazenda Marily”, pediu-me Hercílio Deeke, meu pai, que preparasse para a noite uma churrascada ao estilo bivaque - só carne, pão e farinha, para três pessoas : ele próprio, meu tio Raul e Japy Fernandes ( nascido 29/9/1907), amigo de meu pai e decano dos representantes comerciais da Capital.
Ao final da tarde comprei, no Estreito, junto aos açougues “Koerich”, na época com sede em Santo Amaro da Imperatriz, empresa que havia recentemente estabelecido diversos “picadores” na “Grande Florianópolis”, carne de carneiro, muito apreciada por Raul, e filés de gado. Preparei os espetos e a improvisada churrasqueira, mesa, cadeiras e banqueta com bebidas, debaixo do imenso “Flamboyant” que sombreava grande parte do pátio no jardim. Meu jardim, à beira mar, no Estreito, cujo gramado foi plantado com “leivas” trazidas de Blumenau, foi o último que o Sr. Geraldo Lübcke executou antes de abandonar a profissão de “jardineiro”, para iniciar atividades têxteis, criando, em Blumenau, a “Malharia Juriti”.
Pelas dezenove horas chegaram os três comensais, vindos da Ilha-Capital, com meu pai ao volante do Ford- fairlane ano 1955- placa oficial em bronze, SF1. Ele próprio raramente dirigia o carro oficial, pois hospedava-se no “Lux Hotel”, distante uma quadra de seu gabinete da Secretaria da Fazenda do Estado. O carro permanecia no pátio do Palácio do Governo, e além dele somente lá ficava o carro do Governador Heriberto Hülse, ( nascido 30/4/1902-conferir e falecido em 11/11/1972 – esposa de Heriberto Hülse : Lucy Corrêa Hülse ) que igualmente pouco uso fazia do carro do Estado. Obs. O Vice Governador eleito na Chapa em que era titular Jorge Lacerda, foi o Sr. Heriberto Hülse. Sua posse como Vice- Governador deu-se entretanto somente em 31/8/1956, ( agosto- Sexta-feira) em sessão solene na assembléia Legislativa. Já a posse do titular, Jorge Lacerda, na Governadoria do Estado deu-se em 31/01/1956. A disparidade das datas foi devida a recursos judiciais interpostos pelos partidos que perderam as eleições realizadas em 1955, o que demandou tempo para julgamento.
Era inverno e como a temperatura daquele ambiente no jardim estivesse relativamente baixa, Raul preparou as “bitrucas” à base de Conhaque “Macieira”, sua marca preferida, e “Fernet”. Depois de muito fazermos uso da goela, tanto para comer, beber, como também para contar “causos”, no que Raul Deeke e Japy Fernandes eram impagáveis, lá pelas 23 horas foram-se os convidados de volta para a Ilha. Como de costume sobrou carne à beça, e estando eu cansado, evidentemente só e sem empregados, arrumei tudo muito rapidamente, deixando espetos, grelha e demais apetrechos a recender o cheiro de churrasco por todo o pátio e, sem mais, me recolhi para dormir.
A casa tinha um vasto varandão aberto que dava para o mar, separado da sala de visitas por comprida porta de seis folhas de veneziana, com outras tantas, pelo lado interno, envidraçadas. O vento nordeste batendo naquele conjunto de sanfonas à guisa de portas, provocava ruídos aos quais minha sensibilidade não se acostumava. Entretanto naquela noite, logo que deitei, além dos usuais, ouvi estranhos e inusitados ruídos vindos da varanda.
Levantei-me e, no escuro, acendi somente a luz da varanda, acionando o interruptor pelo lado interno, na sala de visitas. De início produziu-se um soturno silêncio. Pelas frestas da porta veneziana tentei divisar quem poderia estar no abrigo, mas as estreitas gretas só permitiam ver o chão muito próximo da porta, e como a varanda fosse muito larga e ainda tendo comprimento muito além da área de visualização que as fendas permitiam observar, não foi possível ver quem lá estivesse. Nisso consegui discernir, pela sombra, uma vaga silhueta humana projetada pelo reflexo da luz, cujo vulto se erguia com dificuldade, arrastando-se, para em seguida novamente deitar-se no chão. Apaguei a luz e fiquei a matutar sobre o modo de livrar-me daquele bêbedo que certamente fora atraído pelo cheiro da bebida de nossos aperitivos durante a churrascada e agora pretendia curar sua carraspana na minha varanda, pois quando acendi a luz o homem deveria ter-se tocado, mas embriagado tornou a deitar-se.
Apanhei a lanterna de duas pilhas e, dirigindo-me para a porta dos fundos, saí para o jardim. Cautelosamente contornei a casa e, a partir do gramado, lancei o facho da lanterna sobre o varandão. Nada, não havia ninguém de pé. Como proteção havia naquele abrigo, uma mureta, de cerca de oitenta centímetros de altura, que contornando toda a varanda continha uma floreira de gerânios e para melhor observar se o bêbedo ali deixara como vestígio alguma sujeira ou, como já estava a supor, verificar se lá fizera suas necessidades fisiológicas, subi a rampa de acesso ao terraço abrigado, dirigindo o facho da lanterna para o chão.
- Desde muito jovem eu fora um sujeito metido a praticar “audácias”, se bem que fosse cauteloso, não havia o que pudesse me atemorizar com relação a quaisquer crendices - os tabus dos mistérios e do medo, desabaram aos meus sete anos de idade. O incógnito me fascinava, e como meus pais foram extremamente liberais, creio que até muito além do permissível, vivi os limites do imaginável para um rapaz do nosso grupo social. Essa condição era notória e podia ser percebida pelas proibições que os responsáveis de meus colegas faziam, principalmente impedindo que me acompanhassem, quando convidados, a participar das aventuras que consideravam impróprias para nossa idade, bem como de alto risco, mas que, na realidade, a tanto não chegavam. Permitiram-me, acompanhar, desde os 08 anos, meus tios nas grandes e memoráveis caçadas, serra acima e mata atlântica; deram-me muitas armas, espingardas, garruchas e revólveres ; aos 09, nas oficinas de Raul Deeke apreendi tudo quanto lá executavam e a lidar com diversos explosivos, além de fumar e beber aperitivos livremente junto a meus pais. Acompanhava a pesca profissional em mar alto; aos 11 deram-me uma boa motocicleta com a qual atingia todo o Vale do Itajaí, nas longas excursões a cata de orquídeas e caça ; dormia solitário na floresta e adentrava cavernas.
Possuí terras de mata virgem nos confins do “Morro Arranca Paletó”, muito além do “ribeirão Ilse”, no divisor de águas do Itajaí Açu e Mirim, entre Guabiruba e Indaial, e lá fiquei, totalmente só, longo tempo na mata, bancando o anacoreta-eremita. No “Jardim Zoológico de Pomerode” do qual meu tio Victor Weege era co-proprietário, por anos, nas férias, bem cedinho, ajudava os tratadores, fiscalizados pelo Sr. Roedel ( Johannes Roedel que era um técnico- e alemão nato), na alimentação e limpeza das jaulas de toda aquela imensa bicharada. Muito jovem participei, com Victor Weege, de caçadas exclusivas à feras no Paraná. Possuía aos 10 anos uma aprestada bateira amarrada na barranca do rio e não foram poucas as vezes que dormi à beira do Itajaí Açu. Nunca me cobraram horário para retorno e aos 10 anos, em 1947, morei, solitário, cerca de 25 dias no alto do Spitzkopf.
Enfim, depois de morar sozinho, quando ainda menor de idade, durante 04 anos, por todos os cantos do Rio de Janeiro, eu me “considerava” um sujeito “durão e curtido”, imune a qualquer sobressalto, susto ou temor de “seres sobrenaturais”.
Ledo engano. Disso tive a plena certeza naquela noite escura como breu junto à varanda da casa de praia.
Pensava ter que lidar com um bêbedo e jamais poderia, nem por sonhos, imaginar que iria defrontar-me com uma “criatura” tão invulgar e para meu espanto alojada na minha varanda.
Quando o fraco facho de luz bateu “naquilo”, me senti transportado às profundezas do inferno de “Hades”, pois, ali , justo a menos um metro de meus olhos, havia uma “coisa” monstruosa que só poderia ter surgido do outro mundo!
“ Quase cuspi o coração boca afora ! O cagaço foi tão grande que dificilmente passarei por algum maior nesta vida.”.
Um descomunal “ser” de pele negra e lustrosa, grunhindo qual verdadeiro “Leviatã”, abriu seus membros superiores como se fosse a capa negra do demônio e lançou-se sobre mim, para agarrar-me. A “coisa” assombrosa, cujo perfil difuso era mal iluminado pela velha lanterna, ergueu-se até dois metros de altura e escancarou uma colossal bocarra vermelha, decorada com afiados e longos dentes de marfim enquanto debatia-se grotescamente no chão de ladrilhos, armando um “bote” na minha direção.
O monstro só poderia ter brotado diretamente do quintos do inferno e no susto me pareceu um “morcego gigantesco” do tamanho dum hipopótamo e aqueles imensos dentes em arco, que rapidamente focalizei, certamente serviriam ao vampiro para sugar o sangue de suas vítimas. Meu choque topando de chofre na escuridão da noite, tão inesperadamente e naquelas circunstâncias, com a dantesca criatura, foi de transferir, qualquer cardíaco, desta existência para uma melhor. Meu cérebro travou e presumo que tenha literalmente “levitado”, pois meus músculos e nervos paralisaram; não me recordo como consegui recuar.
Afastei-me alguns metros, apaguei a lanterna e pensei em buscar a arma.
Passados alguns instantes, mais sereno, comecei a cismar. Enfim o que seria aquilo ? Deveria haver uma explicação lógica! Antes de qualquer ação precisava saber o que, exatamente, era aquilo.
Depois de “cutucar a mim próprio” para constatar que não estava sonhando e encher bem os pulmões de ar, redobrando minha provisão de coragem, aproximei-me da “jardineira” da varanda e só então apertei o “plug” da lanterna.
Sim, lá estava o monstro no mesmo lugar.
Só então, e muito lentamente, pude constatar que na realidade tratava-se de uma variedade dos enormes “Leões Marinhos”, creio que fosse uma “Morsa”( Morsa : Finnez Mursu - Trichecus, os gigantes dos mamíferos da espécie dos pinípedes, animais corajosos e temíveis). O “bicho” tinha um porte avantajado, pesaria dias depois, no “Mercado Público de Florianópolis, conforme a tabuleta na exposição, 280 kg.
Devagar pus-me a matutar para encontrar uma maneira de tirar o “Leão Marinho” dali.
Nisso, observando melhor, notei que entre as nadadeiras superiores, ( braços) que abertas, no susto, me pareceram a “capa do demônio”, e o pescoço, havia uma maçaroca de fios de “nylon”, restos do que foi uma rede de pesca, que lhe estrangulavam fortemente a goela. O animal devia estar faminto e como viu que o portão da rampa para o mar estava aberto, certamente entrou atraído pelo cheiro da carne do churrasco.
Na geladeira havia “manjuvas” para isca da carretilha de pesca que eu freqüentemente atirava, de meu jardim, ao mar, além de muita sobra de carne temperada para a churrascada daquela noite. Acendi as bruxuleantes luzes então alimentadas pela oscilatória energia fornecida pela “Ellfa”-Empresa de Luz e Força de Florianópolis S/A, apanhei as manjuvas e fui jogando-as para o bicho que as abocanhava em pleno ar. Os 02 kg de manjuvas nem para aperitivo bastaram, o bicho pedia mais.
Entretanto preocupava-me a “trança” dos fios que o sufocavam e resolvi ao menos tentar livrá-la daquele suplício. Rápido fui à garagem, apanhei uma grossa vara de bambu e, na ponta, amarrei minha afiada faca de pesca. Enchi um balde com pedaços cortados do resto da carne temperada e, depois de acender todas as luzes da área, aventurei-me à safá-la daquela forca. Atirei-lhe um grande pedaço da carne com ossos e, de longe, alcei a vara para cortar a cordoalha. Enfiei a faca virada com o lado cego contra o pelego da “morsa”, mantendo o gume em posição oposta e empurrei a vara, firme e com vigor, contra a fiação torcida.
Foi uma só estocada e a embolação de nylon estava secionada. Tive a nítida impressão de que o bicho, fazendo um movimento de torção com a cabeça e pescoço, “compreendeu”, que fora eu quem o livrou do laço.
Então devagar fui atirando os nacos em direção do portão da rampa para o mar, conduzindo o pesado “Arctocephalus” para aquela saída. A criatura arrastava-se para apanhar o alimento que eu ia jogando e entre cada novo lançamento, levantava a cabeça e meio corpo na minha direção, fixando-me com seu olhar profundo e esperto, como a implorar que eu tornasse a jogar comida. A operação foi demorada, durante a qual pude observar que tratava-se de uma fêmea e progressivamente o “focídio” foi ficando dócil ; chegou até a esboçar sorrisos de satisfação quando eu lhe atirava as sardinhas e as postas de carne. A criatura diferençava-se muito dos balofos e desengonçados “Leões Marinhos”, ( Otaria flavescens, e Arctocephalus australis ) do Atlântico e Pacífico sul, era muita ágil, esperta e de “otária” nada tinha. O corpo era esguio, o focinho não era achatado, tinha pequenas orelhas, pouco bigode, pelugem sedosa e poder-se-ia mesmo dizer que sua “feição de rosto” era bonita e agradável, enfim apresentava um aspecto elegante, cativando quem a observasse.
Num relance da memória, recordei-me de “Ulísses”, o grego, na sua “Odisséia”, que precisou tapar os ouvidos com cera para não ser atraído pelo “ canto das sereias”, apreciando entretanto seus avassaladores encantos, conto épico onde, com toda certeza, o autor inspirou-se na extrema semelhança das “focas” com as beldades femininas. Dias após procurei, na biblioteca pública que havia na rua Trajano, conhecer algo mais sobre leões marinhos, lobos marinhos, ursos marinhos morsas, focas e lontras. Pelas estampas que lá apreciei e mesmo através de todas quanto até o presente pude observar , não foi possível encontrar alguma, cuja semelhança fosse fidedigna. Certamente não era uma foca, entretanto também não se parecia com um leão, lobo marinho ou morsa . Sua aparência facial estava mais para a de uma lontra, do que para os conhecidos lobos- do- mar. Por incrível que possa parecer, e custa-me dizer isso, a verdade é que sua fisionomia era muito feminina - acentuadamente feminil. Queiram perdoar-me, porém muita mulher por ai existe, bem mais atraente ficaria se permutasse seu rosto com o daquela criatura.
Deu-me uma imensa compaixão perceber quanto faminta estava e, quando consegui fechar o portão atrás dela, derramei-lhe todo o balde de carne e ainda tornei a preparar outro que foi vorazmente consumido pela famélica visitante. Foi uma infelicidade que eu estivesse tão cansado naquela noite, pois creio que poderia, com alguma paciência, tê-la feito permanecer tranqüilamente no quintal, que serviria de seguro abrigo quando do retorno de suas incursões ao mar. Também não deixava de ser perceptível sua fácil domesticação e pude constatar que seu “processamento mental” era de fato muito superior ao de um chimpanzé, quando reagia com muita vivacidade a cada gesto meu, transmitindo, com movimentos das nadadeiras superiores ( Braços) e pelo seu olhar, a certeza de um “raciocínio cerebral” consideravelmente adiantado .
Muitos anos depois, o “oceanólogo” Jacques Cousteau, durante sua expedição pelo Amazonas levaria, bordo do “ Calypso”, uma lontra ou ariranha avançadamente amestrada e ainda a marinha de guerra americana utilizar-se-ia dos focídios para desativar “bombas” de superfície e nas profundidades dos mares. Na manhã seguinte, junto à praia, não havia mais sinal da criatura.
Evidentemente, não pude deixar de contar a ocorrência, com todos detalhes, a meus colegas funcionários da Secretaria da Fazenda. Os mais íntimos foram chamados por meu pai ao Gabinete da Secretaria de Estado, e esperando o anúncio de alguma nova medida de procedimento fiscal, vieram tensos já aguardando problemas pela frente. Meu pai, o primeiro, naquela manhã, a saber do episódio, acomodado em sua elíptica escrivaninha de Secretário de Estado, então pediu que eu relatasse “um caso real que valeria a pena perder dez minutos para ouvir”, para aqueles funcionários que de pé aguardavam, ansiosos, alguma novidade administrativa. Enquanto eu desenvolvia o relato contando todos os pormenores do episódio daquele meu encontro com a “sereia”, um dos presentes, o Dr. José Baião ( nascido 31/10......), não resistiu de tanto rir, vermelho a verter lágrimas, engasgou passando mal e precisaram socorrê-lo.
Cheguei a arrepender-me por não ter ficado quieto, pois durante semanas a fio, fui alvo das piadas e gozações de meus colegas que truncando a ocorrência, com pérfidas palavras, faziam “blague” sobre o meu encontro com a “morsa” que convertiam para “moça” e o lance que foi “amistoso”, maliciosamente transformavam em “amoroso” e de reboque inventavam os mais picantes chistes para me atazanar, e nisso o “ilhéu” era mestre. Até pelotas de cera apareciam na minha escrivaninha com bilhetes de recomendação, onde constava : “Vacina auricular contra a sedução do canto das sereias”.
Passados alguns dias do meu encontro como a “criatura”, um colega informou-me que no “ Mercado Público”, no centro da Capital, estava exposto um “Leão Marinho” apanhado na praia de Coqueiros. Mandei-me para lá e assisti a um dos espetáculos mais deprimentes que o apregoado “ser racional” possa produzir. Uma fila de cerca de vinte pessoas aguardava a vez para adentrar um tapume em quadro, após pagar entrada. Ao sair um grupo de 10 pessoas, outras tantas entravam. Sim, sem dúvida alguma era a minha “ Morsa”, agrilhoada com grossas argolas de ferro, uma no pescoço e outra antes da nadadeira traseira, ambas fixas a correntes. A infeliz fêmea, já então erradamente classificada na tabuleta de “Promoção do Espetáculo” como “Leão Marinho”, pesando 280 kg , era objeto da prática dos mais baixos atos de provocação, perversidade e perversão.
Para atiçá-la estocavam-na com longo ferro de construção, puxavam-lhe com força a argola que envolvia a nadadeira traseira para que o populacho de “ seres evoluídos, criados e feitos à semelhança de um Deus”, com sua curiosidade torpe e pervertida, pudesse melhor apreciar a região pubiana da criatura, onde a molestavam com um cabo de vassoura. Riam e diziam gracejos aqueles obscenos humanóides da platéia, que a cada domingo, implorando misericórdia somente para si próprios, purgavam seus pecados nos templos para então, perdoados, isentos e aliviados, poderem tornar a encher o espaço, com nova série de depravações. E não eram poucos, já havia dias que uma multidão assistia, em grupos de dez indivíduos, a sessão de tortura e sado-masoquismo.
Quando estive na fila, e não se passaram mais de vinte minutos, dois grupos de pessoas me precederam, portanto o espetáculo fora repetido duas vezes em vinte minutos, antes de meu ingresso. E não pensem que eram pessoas incultas, absolutamente não. Todos eram adultos e a maioria, moda na época, trajava terno e gravata. Fiquei enojado com a “decantada humanidade - senhora do planeta por outorga divina !” Tudo acontecendo em pleno século XX, na Capital de um Estado, a menos de 200 metros do Palácio do Governo e de sede episcopal ou Catedral , “mater e magistra” daquela escória de povaréu.
A criatura ficou de pé e nisso, aproximando-me, abanei com a mão e bati pausadamente palmas para ela, como fiz repetidas vezes naquela noite em minha casa. Ela mirou-me fixamente e a seguir, sorrindo, emitiu um som misto de sopro, lamento e miado, causando-me a forte impressão de que me reconheceu, porém logo seu olhar transformou-se, denotando tristeza, como a suplicar misericórdia libertando-a daqueles suplícios.
Dirigi algumas palavras ao responsável da “promoção”, tentando fazê-lo compreender a barbárie que praticava - mas a reação dos assistentes, contra mim, quando falei que aquilo era “caso de polícia”, foi tamanha que pouco faltou para me agredirem. Um deles, conhecido de vista, pegando-me pelo braço levou-me para fora daquele antro, dizendo : “deixa prá lá, a polícia nada tem a ver isso, é só um animal, não há mal nenhum, etc.”.
Revoltado retirei-me dali, pois a “criatura”, um vertebrado superior, do gênero dos pinípedes, representativo de um elo no encadeamento da origem das espécies, muito próxima da vertente a que devemos nossa própria origem, ( portanto nossa aparentada direta no grande ramo dos vertebrados), ali estava a provar e padecer toda a sandice estulta de que é, sempre foi, e infelizmente está a parecer que sempre será, dotada a soberba e prepotente humanidade.
Acabrunhado com o que assisti, fui caminhando pela calçada junto ao muro do fétido lagamar da “Baia Sul”, ( Onde o mar encostava no trapiche rente ao Mercado, atualmente existe o grande aterro ) até a ponte-passadiço que servia ao bar do “Miramar”, enquanto perguntava-me : “Que espécie de caridade, pregam as religiões no que concerne aos seres da natureza animal, a fim de, excluídos os costumeiros paralogismos de seus apologistas, objetivar a efetiva educação, incutindo, naquela plebe ignara e rude, algum sentimento moral de sensibilidade, misericórdia e piedade , se não de afeição, pelo menos de eqüidade ecológica na divisão de espaços deste planeta que não somente a nós, ditos racionais humanos, pertence por natural direito, o verdadeiro direito, e não o sofisma manobrado por “Montesquieu” que artificial e mecanicamente o transveste em “leis” exclusivas, para, depois de pactuadas pelos interesseiros-interessados, prevalecer draconianamente sobre toda a “Natureza do Planeta”.
“IUS NATURALE EST QUOD NATURA ONMIA ANIMALIA DOCUIT” -ULPIANUS, liber 01 parágr.3 D. de just 01,01 . ( Domitílio Ulpiano – nascido em Tyro em 170 e falecido em Roma em 228.)
Mal passados seis meses, em fevereiro de 1960, na praia de Cabeçudas, Itajaí, assistido por grande número de curiosos, me vi compelido a “sacrificar caritativa e misericordiamemte”, em pleno mar, a tiro de revólver 32, arma que, a nado, portei sobre minha cabeça, debaixo da alta touca de borracha, para banho, de minha mãe que a tudo assistiu, um legítimo Leão Marinho, animal que distante cem metros mar adentro, debatia-se a sofrer, expondo um profundo corte na garganta pelo qual expelia ar e água, portanto já estava, muito antes de ser por mim alvejado, irremediável e mortalmente ferido.
Mas essa é outra “história”.
{(“ Se tiver toda a fé a ponto de remover montes e não tiver caridade nada sou- 01.Coríntios 13-3.})”
Niels Deeke-1986.Memorialista em Blumenau -SC