O MORRO SPITZKOPF DO GARCIA APÓS A TRAGÉDIA E O SEU FUTURO.
Artigo
Lauro Eduardo Bacca – Biólogo e Ecologista
A propriedade que engloba o morro do Spitzkopf em Blumenau é uma das pioneiras no Estado e no país em preservação da Mata Atlântica. Desde 1932, quando Udo Schadrack herdou as terras de seu pai Ferdinando Schadrack, não há praticamente qualquer exploração daquelas matas, excetuando-se nas últimas duas décadas a venda e o grave problema do roubo de palmito na região.
Problemas à parte, essa preservação permite que boa parte do trajeto de acesso ao pico do morro seja feito em meio à exuberância da floresta nativa de excelente qualidade de conservação, com sua riquíssima biodiversidade. Árvores atualmente ameaçadas de extinção, riachos e nascentes de límpidas águas encachoeiradas, completam o belo cenário. Como prêmio final o visitante depara-se com a magnífica paisagem avistada de seu topo, sem dúvida um dos mais belos, inesquecíveis e gratificantes panoramas de Santa Catarina.
Tudo isso se encontra hoje valorizado pelo potencial de preservação do Parque Nacional da Serra do Itajaí, que terá na trilha e pico do Spitzkopf, esperamos, um dos seus maiores atrativos, conforme previsto no Plano de Manejo desse importante Parque Nacional, concluído em tempo recorde no Brasil.
Descanso para Lanche na subida do Morro Spitzkopf - Casa em 1927 Morro Spitzkopf. Fotos Arquivo Adalberto Day
Há mais de 100 anos que o morro Spitzkopf é visitado pelos amantes da natureza, caminheiros e excursionistas. A partir da construção de um sólido abrigo de madeira de lei, erigido em 1929 na altura dos 800 metros e com a abertura de uma larga picada que mais tarde permitiu acesso a veículos, a visitação tornou-se bem frequente.
Essa visitação acabou sendo acompanhada de impactos ambientais na área, que somados aos impactos de invasores, como ladrões de palmito e de fauna (caçadores clandestinos), podem assim ser resumidos:
1) Lixo e barulho: apesar do grande avanço na Educação Ambiental, ainda se vê lixo abandonado em meio à natureza por alguns visitantes absolutamente mal educados e despreparados para o saudável e proveitoso desfrute do contato com o ambiente natural. Felizmente esses parecem que são uma minoria, mas seu impacto fica visível para todos os outros visitantes. Alguns visitantes despreparados ainda levam som mecânico ou rádios, em completa falta de respeito aos demais visitantes e falta de sintonia com o ambiente circundante. Isso acontece também em outras Reservas Naturais;
2) Incêndios: por volta de 1951 houve uma grande seca, e provavelmente uma fogueira feita por visitantes ou caçadores, resultou em incêndio que destruiu a vegetação nativa de cerca de 30 mil metros quadrados dos dois morrotes ali existentes, na altura do abrigo da cota 800. No morrote mais a oeste foram plantadas mudas de Cunninghamia sp e noutro mudas de Pinus sp, que logo transformaram-se em grandes árvores que encontram-se lá até os dias de hoje. Em 1995 aconteceu um dos maiores impactos, que foi o incêndio que destruiu toda a vegetação das faces norte e oeste e parcialmente a do leste do topo do morro, resultado de fogueira e mesmo soltura de fogos de artifício por parte de visitantes irresponsáveis e inconsequentes.
3) Depredação: O abrigo construído em 1929 a duras penas (“todo o material foi serrado manualmente na mata ali existente e transportado tudo às costas...”), que resistiu a mais de 60 anos de intempéries climáticas, não resistiu a meros seis anos de vandalismo, causado por visitantes pouco selecionados, após a morte de Udo Shadrack. Foi paulatinamente sendo depredado e atualmente não mais existe. Como também em outras Unidades de Conservação, ainda observa-se, ainda que não intensamente, o corte de algumas árvores para obter-se lenha.
4) Caminho/estrada de acesso: em abril de 2006 aconteceu novo grande impacto no acesso ao morro. Um trator esteira foi enviado ao local para melhorar o caminho-estrada, patrocinado pelo poder público municipal, com a justificativa de apoio ao turismo na região. Sem qualquer orientação técnica ou acompanhamento que o delicado equilíbrio ecológico do local exige, o resultado depois de vários dias foi de um tremendo impacto: formação de taludes verticais de até mais de 2 metros de altura, deposição do material removido encosta abaixo, indo atingir os cursos d’água, danos às árvores que vão desde lascas de troncos e raízes até rachaduras que dividiram troncos inteiros e mesmo árvores inteiras, algumas de espécies raras e centenárias, derrubadas pela lâmina do trator. Como resultado final desta atividade de “fomento ao turismo local”, restou a sensação de que uma loja de cristais foi invadida por um touro estabanado.
O Instituto Histórico de Blumenau parabeniza o Ecólogo e
associado Lauro Bacca pela centésima subida ao Morro Spitzkopf em 12/11/16. Esta marca é
apenas simbólica em sua luta pela preservação de nosso patrimônio ecológico.
Sem Bacca com certeza Blumenau seria menos verde! Parabéns a você e a todos que
o acompanham nesta jornada! (foto da Coluna do Pancho JSC de 14/11/2016)
Deslizamento no caminho-estrada para o Morro Spitzkopf na altitude aproximada 200 m. -
Depois de tudo isso veio a tragédia, natural desta vez, de novembro de 2008 na região. Com o objetivo de averiguar como se encontrava aquele paraíso, ainda que um pouco maculado, subimos o morro a pé, minha mulher Êdela e eu, no dia 21 de março de 2009.
O resumo do que encontramos ao longo do caminho/estrada, desprezadas as quedas de barreiras de menor porte, foi:
13 barreiras ao longo do trajeto de seis km junto à estrada de acesso e por ela visivelmente potencializada e duas barreiras na vertente oposta do vale do ribeirão Goldbach. Em termos percentuais, 86 por cento dos deslizamentos foram potencializadas pela ação do homem, principalmente na área afetada pelo trator há três anos; observamos 7 % (somente uma) barreira sem causa antrópica aparente e 7% provavelmente potencializada pela ação humana (uma barreira grande avistada mais ao longe, da altitude aproximada dos 280 metros).
Felizmente, há uma boa capacidade aparente de recuperação da natureza, o que faz com que, aos olhos dos pouco treinados na observação da natureza, muita coisa pareça normal, exceto pelas barreiras maiores que abriram verdadeiros clarões na mata, junto à estrada de acesso. Quarenta e dois anos e 72 subidas a pé ao Spitzkopf depois, posso afirmar que conheço bem tudo o que aconteceu nessas quatro décadas no local. Os resultados da ação humana pouco prudente, desnecessária e sem critérios técnicos de conservação são visíveis na maioria dos locais que apresentaram problemas. Vários dos deslizamentos são fruto evidente de sucessivos “reparos” da estrada ao longo dos anos e que resultaram em sucessivos acúmulos de peso de material na margem de baixo da estrada e, fatalmente, o que iria acontecer mais cedo ou mais tarde, os deslizamentos, abrindo verdadeiras “feridas” naquela paisagem.
- Tudo começou com um simples rastro de pneus de um carro que passou onde jamais deveria ter passado. = Parte superior (cerca de 15 % do total) de um grande deslizamento na cota aproximada 730 metros onde em 2006 o trator depositou muito material.
O trânsito de alguns veículos que se sucedeu à “melhoria” feita em 2006 do caminho-estrada de acesso ao alto do morro, como era de se esperar, infelizmente, abriu inevitáveis sulcos ao longo da estrada. Como não houve manutenção dos desaguadouros em quantidade e qualidade suficiente (aliás, não houve nenhuma manutenção). Naquele ambiente íngreme e constantemente úmido é muito difícil subir com veiculo automotor sem patinar, resultando em profundos rastros de pneus, que fatalmente transformam-se em canais por onde desce a água, provocando forte erosão na estrada com os conseqüentes impactos ambientais. Agravando esse quadro, verifica-se que alguns motoristas ou motoqueiros, em busca de alguma emoção no lugar errado, ainda aceleram propositadamente, patinando sem necessidade.
- Pequena represa totalmente assoreada pela erosão e deslizamentos do caminho - estrada; - = tronco de árvore lascado por lâmina de trator em 2006, necrosado três anos depois.
Conclui-se facilmente portanto que veículos e Spitzkopf não combinam de forma nenhuma. Como resultado, os verdadeiros amantes da natureza, aqueles que querem apreciá-la como ela é e não como mero um pano de fundo para algumas aventuras de usuários da mesma, acabam sendo espantados, como é o nosso caso: eu, esposa e muitos amigos, tornamos nossos passeios ao morro cada vez mais raros, pois, qual é a graça de se estar em meio a uma das mais exuberantes florestas nativas do nosso estado, se de vez em quando somos agredidos por ruídos de motores e o horrível cheiro de escapamentos (depois de meia hora de caminhada naquele ar puro o nariz torna-se muito sensível à poluição) em plena floresta?
Concluindo, apesar dos estragos, a grande maioria potentializados pelo homem, a natureza ainda continua conseguindo ser bela no Spitzkopf. A verdadeira recuperação do ecossistema ao longo da estrada vai demorar muitas décadas, provavelmente mais de um século. Mas o aspecto de exuberância da Floresta Atlântica se mantém e podemos prever que em poucos anos as “feridas de terra exposta” estarão cobertas de um verde, diferente do original, mas verde. Esperamos e torcemos para que jamais aconteça nova reabertura do caminho-estrada em direção ao topo do Spitzkopf, pois trata-se de local de contemplação da natureza onde uma estrada transitável é quase impossível de ser mantida sem altos custos e impactos ambientais.
Lamentamos pelos que, por dificuldade de locomoção, não possam desfrutar daquelas maravilhas. Mas enquanto não se encontra uma solução que permita que essas pessoas possam lá chegar sem impactos, é melhor que fique assim. Os que se afastaram e deixaram de visitar o Parque tem agora a oportunidade de fazê-lo sem serem importunados por veículos que se aventuram em lugares onde jamais deveriam ir, principalmente considerando que a quase totalidade dos que tem subido de veículo ou moto não são absolutamente pessoas com dificuldades de locomoção e poderiam faze-lo perfeitamente a pé ou de bicicleta, se são amantes verdadeiros e não meros usuários da natureza.
Corre a informação que no plano de manejo do Parque Nacional da Serra do Itajaí, está previsto fazer do Spitzkopf talvez o seu principal atrativo. E isso poderá implicar muita gente e subida de veículos motorizados para os com dificuldade de locomoção, ou simplesmente, nada afeitos a longas caminhadas. Para que isso aconteça, não vemos outra alternativa que não a do estabelecimento de horários pré-determinados para o trânsito de veículos, em respeito aos que querem “ofegar” um ar puro e desfrutar do silêncio da floresta durante a subida, e que só subam veículos específicos do Parque, evitando amadores ao volante no meio da floresta e que, pelo menos nos trechos mais delicados (mais de 70 % de todo o trajeto de seis km !) a pista seja asfaltada ou concretada com técnicas de minimização de impacto visual e ambiental e que já existem há um bom tempo.
- Na área preservada há mais tempo, foram poucos os deslizamentos de terra ocorridos na paisagem ao fundo, nos antigo Parque Ecológico Artex / Parque das Nascentes. - Base de caule de canela-preta, Ocotea catharinensis, árvore nobre e ameaçada de extinção, com dificuldades de cicatrização por ter sido desnecessariamente lascada pela lâmina de trator em 2006. O órgão ambiental municipal não exigiu o tratamento dendro cirúrgico adequado para esses casos na ocasião, como deveria te-lo feito.
Quanto à quantidade de visitantes/dia, evidentemente que haverão limites. Mas mesmo assim esses limites são relativos. Numa das vezes que visitei a Reserva Salto Morato, uma RPPN da Fundação O Boticário nas fraldas da Serra do Mar no Paraná, o gerente da época assim respondeu à minha pergunta sobre o impacto ambiental dos visitantes; “é muito relativo: 500 japoneses ou alemães incomodam menos que 50 brasileiros ou argentinos”. É assim nos países que já aprenderam como conciliar turismo com a natureza preservada nas suas Áreas Naturais Protegidas. É assim que deverá ser nas nossas Unidades de Conservação brasileiras, como na área do Morro Spitzkopf agora, enquanto estiver sob administração da iniciativa privada e quando for integrada definitivamente ao Parque Nacional da Serra do Itajaí.
Texto/fotos Lauro Eduardo Bacca
Arquivo:Lauro Eduardo Bacca – Biólogo e Ecologista/Março de 2009