Em histórias de nosso
cotidiano, apresentamos o amigo Flávio
Monteiro de Mattos é carioca de nascimento e blumenauense por opção. Texto enviado por Flávio Monteiro de Mattos.
Neste ano (2017) comemorou-se
o centenário do nascimento do João Saldanha, certamente o mais brilhante
comentarista que o Brasil já teve e que, com sua visão aguda, anteviu os
percalços que nosso futebol enfrentaria caso não mudasse a forma como era
gerida. Certamente para ele, os 7 x 1 que a Alemanha nos impôs na última Copa
era “pule de dez”, para parodiar uma de seus bordões. Vale lembrar que seu
trabalho à frente da seleção brasileira durante as eliminatórias para a Copa de
1970 foi fundamental para a conquista do tri-campeonato, que de tão consistente
não sucumbiu diante das mexidas políticas do Zagallo.
Entre as homenagens que lhe
foram prestadas, a editora Lacre republicou o livro “Os Subterrâneos do
Futebol”, por ele escrito em 1963, no qual relata com maestria os meandros do
futebol brasileiro em sua passagem como treinador do Botafogo, time de coração que
sob seu comando tornou-se campeão carioca no longínquo ano de 1959.
Leitura fácil e direta, João
expõe suas agruras como técnico de um time que tinha jogadores da expressão de
um Nilton Santos, Didi, Amarildo e o genial Garrincha, que não somente
entortava os adversários no campo como os dirigentes do clube nas excursões que
os times da época eram obrigados a fazer para pagar a folha de salários.
Entre tantas peripécias
enfrentadas dentro e fora das quatro linhas, exalta Saldanha que nos mais de duzentos
hotéis em diferentes lugares que o Botafogo atuou durante o período em que foi
treinador, nunca recebeu sequer uma reclamação de um gerente de hotel de que
estaria faltando uma toalha, sabonete ou cinzeiro de qualquer apartamento. Pelo
contrário, foram incontáveis as cartas e ofícios existentes enviados pelos
proprietários de hotéis ao clube, de elogios e agradecimentos pela preferência
do estabelecimento e colocando-se a disposição, exceto de um episódio ocorrido
em Santa Catarina e especificamente, Blumenau, que transcrevo a seguir (pág.
231).
“Faltou
uma roupinha"
Saldanha
Só uma vez aconteceu uma coisa
desagradável. Foi em Blumenau,
Santa Catarina, onde fomos fazer uma partida amistosa. Entre a programação de
homenagens que nos foram prestadas estava uma visita a certa indústria de
tecidos e confecções de lã. Percorremos a fábrica e no final nos ofereceram um
drinque acompanhado de um presente para cada um: um pequeno embrulho onde havia
dois ou três artigos da indústria. Um par de meias, uma camiseta, etc.
Após a visita, retornamos ao
hotel e íamos tomar o ônibus para Curitiba onde pegaríamos o avião para o Rio.
Estávamos nos preparativos finais, da saída do hotel, quando chegou o gerente
da indústria que visitáramos, e, muito discretamente, chamou-me a um canto e foi
dizendo: O senhor desculpe, mas aconteceu uma coisa desagradável. Depois da
visita demos por falta de uns artigos especiais de uma encomenda. Além de nós,
ninguém mais esteve na “sala de acabamento” – aquela em que eu distribuí
aquelas lembranças -, eu não quero afirmar nada... mas talvez alguém tenha
levado... por engano ou...
Perguntei-lhe o que havia
desaparecido e o homem explicou:
Não é coisa de importância nem
de muito valor. É uma encomenda especial. Trata-se de um conjuntinho de lã para
criança. É que amanhã é aniversário do neto do dono da fábrica e a senhora dele
pediu que fizessem esse conjuntinho. Uma blusa e uma calcinha de lã creme, com
um pequeno bordado na blusa. É coisa à toa. Do contrário, eu nem viria aqui
incomodar os senhores. É uma coisa tão pequena que pode ter havido um “engano’,
desculpou-se o homem, muito gentilmente.
“Mão-leve no meio do “circo”
Perguntei ao tal homem se a
tal roupinha de criança estaria na mesa grande, onde fora feita distribuição
dos presentes, e ele respondeu que não. As peças desaparecidas estavam em uma
prateleira grande que havia no fundo da sala de acabamento.
Eu tinha feito a pergunta para
me certificar se houvera engano ou má fé. Afinal de contas, alguém poderia ter
apanhado a coisa sem querer. Mas, evidentemente, fora roubo. E os que homens
tinham feito tudo para nos agradar não estariam ali nos incomodando se não
tivessem certeza que a roupinha fora mesmo furtada.
Pedi-lhe que tivesse um pouco
de paciência, pois seria muito fácil achar a roupa de criança. Seria feita uma
revista nas bagagens e, logicamente, se fosse alguém da delegação,
encontraríamos o negócio. Mas avisei-lhe de que a “revista” não iria ser feita
no hotel e expliquei por quê: “Se começássemos a batida ali, quem estivesse com
a roupa poderia se desfazer com facilidade do troço.” Além do mais, eu estava
profundamente interessado em encontrar o ladrão. Andávamos como circo, de
cidade em cidade, e seria desagradável um “mão-leve” no meio.
Assim, embarcamos todos no
ônibus. As bagagens eram pequenas. Em maioria, maletas de mão, pois a excursão
era de poucos dias. Apenas um jogo em Curitiba e o tal jogo em Blumenau.
Jogamos na sexta, em Curitiba, dia em que chegamos e, no domingo, em Blumenau,
quando sairíamos de novo para o Rio, via Curitiba.
O homem estava de carro e
pedi-lhe que acompanhasse o nosso ônibus até a saída da cidade, que era perto.
Também havia a intenção de evitar algum vexame maior ou complicações com a
polícia.
Mal saímos de Blumenau, uns
quinhentos metros adiante na estrada, mandei parar o ônibus e descer todo
mundo. O pessoal estranhou o fato. Resmungaram e coisa e tal, mas saíram.
Quando todos desceram, eu expliquei o que havia e pedi que quem tivesse mala
fechada fizesse o favor de abrir. Todos toparam imediatamente. Chamei o homem
da fábrica que tinha chegado em seu carro e fomos abrindo as malas.
Pequeno
descuido...
Numa delas estava, realmente,
o conjuntinho de lã que havia sido roubado da fábrica. O dono da maleta não era
nenhum jogador. A maleta pertencia a um jornalista de Curitiba, um tal de
Ferreira, que havia se engajado na delegação quando passáramos na capital
paranaense e que iria ficar em sua cidade quando de nossa passagem de volta
para o Rio.
Explicou que, naturalmente,
tinha havido um equívoco e apanhara, por descuido, outro embrulho. Houve um
silêncio meio chato, mas o homem da fábrica estava satisfeito por haver
recuperado o presente da criança. Depois de deixar bem claro que o rapaz
descuidado não pertencia ao clube, embarcamos no ônibus e prosseguimos viagem.
A única medida tomada foi que
achamos mais conveniente que o rapaz distraído tomasse outro ônibus. Um de
“carreira” que havia de duas em duas horas, para voltar para sua cidade.
Fornecemos-lhe a passagem e lhe desejamos boa viagem. O homem da fábrica, muito
atencioso, ainda o conduziu de volta à Blumenau para que tomasse o ônibus no
ponto inicial.
Não há condição. Jogador de
futebol pode arrumar encrenca dentro de campo com a polícia ou um quebra-pau
num cabaré ou num bordel, mas em mais de duzentos ou trezentos hotéis, sei lá,
em que passei com a delegação de futebolistas profissionais, jamais tivemos um
caso de “descuidos” ou coisas desse tipo.
A
porta de vidro
Saldanha
São homens calejados e
“vacinados” em relação a viagens. Não ficam no açodamento que é muito comum em
certas delegações do chamado esporte amador, que viajam uma vez na vida e outra
na morte e que tem dado os maiores vexames em hotéis e aeroportos.
Mas uma briguinha acontece de
vez em quando. Uma vez em Lisboa, na porta do hotel, o Amarildo chateou tanto o
Chicão que esse, perdendo a paciência, deu-lhe um “cacête” que o Amarildo saiu
pela porta de vidro, deixando um buraco que nem desenho animado. Não se
machucou, apesar de que o vidro tenha ido para o “vinagre”.
Entrou logo a turma do
deixa-disso e a única providência cabível era pedir a conta do prejuízo ao
gerente. Até que não ficou muito caro. O vidro foi colocado no mesmo dia e
ficou em seis mil e poucos cruzeiros, no ano de 1959. Amarildo, a princípio,
achou que o Chicão teria que pagar uma parte, mas por fim, achando-se culpado,
pagou sozinho o estrago. Depois daquela, nunca mais chateou ninguém perto de
uma porta de vidro.”
Esse livro é leitura
obrigatória para os amantes do futebol escrito por aquele que foi o mais
laureado cronista esportivo que o Brasil já teve que.
Os Subterrâneos do Futebol,
João Saldanha, edição comemorativa, editora Lacre, RJ / 2017.