quinta-feira, 5 de outubro de 2017

- Cheiro de Goiaba


Mais uma participação da escritora, historiadora Urda Alice Klueger, Comentando o seu primeiro dia de aula, na Rua da Glória antiga Escola São José, e que serviu de aprendizado para seu sucesso ainda neste primeiro ano. 

CHEIRO DE GOIABA


No finalzinho de 1959, meu pai nos trouxe de volta para Blumenau, depois de termos morado por quase quatro anos em Balneário Camboriú. Com as confusões que uma mudança acarreta, meus pais perderam a data de matrícula na escola onde eu deveria estudar, e  só houve um jeito de eu não perder o ano: fui matriculada junto com o Primeiro Ano Repetente, na Escola São José, (atual EEB Governador Celso Ramos)  das queridas Irmãs da Providência de Gap, no bairro Garcia, em Blumenau. 
Eu estava assustadíssima naquele dia primeiro de março de 1960, quando me encaminhei para a escola, acompanhada da minha prima Ruth. Usava uniforme novo em folha, e minha mãe havia costurado para mim uma linda pasta de pano vermelho. Naqueles idos, ia-se descalço para a escola. Havia bem uns quatro quilômetros para andarmos, e o fizemos passando por dentro de todas as poças de lama, até que, numa das  tentativas, eu dei a maior escorregada e quase que me espatifo dentro de poça colossal. Tremi nas bases: o que aconteceria se tivesse caído na lama, e chegasse toda suja na escola? Fiquei ainda mais assustada, e me grudei na Ruth, já veterana do segundo ano.
Tudo era novidade, na escola. Minha primeira professora, a querida Dona Maria Pisa, não sabia que havia uma aluna novata na sua turma problemática. Quando digo que a turma era problemática é porque era mesmo – tinha moças e moços na sala, que repetiam o primeiro ano pela sétima, oitava vez. Alguns deles abandonaram a escola pelo meio do ano, pois haviam completado 14 anos e tinha  chegado a sua hora de irem para a fábrica, destino de quase todos no nosso bairro operário.
Achando que todos os alunos eram repetentes e sabiam das coisas, Dona Maria Pisa não deu as informações que se dão aos novatos e, quando bateu o sino para o recreio e a turma se jogou porta afora, eu achei que era para ir para casa. Rapidamente, recolhi meus cadernos na pasta vermelha, e desci as escadas junto com todo o mundo.
Como riram de mim! Formou-se um círculo à minha volta, a gozar da minha cara pela gafe, naquela crueldade ingênua que é tão peculiar às crianças. Minha prima Ruth me acudiu, e  então alguém reparou na minha pasta vermelha – ninguém tinha uma pasta assim,  todos tinham pastas de couro marrom, e a gozação recomeçou.
Foi um começo bem traumático, mas logo passou. Em poucos dias eu estava escrevendo direitinho,  desenhando direitinho, fazendo as lições direitinho. Por estar junto com os repetentes, não tive cartilha – recebi, logo, um primeiro livro de leitura, que li de cabo a rabo no primeiro dia, ao contrário dos outros colegas, que não terminaram de lê-lo até o final  do ano. Creio que, até o fim de março, já estava mais que ambientada na escola, e tenho a maior saudade daquele tempo de março, quando a sala de aula recendia à goiaba.
Todos levávamos lanches, grandes sanduíches de linguiça ou de banana frita, envoltos em guardanapos de pano, pois o papel era raro e o plástico ainda não surgira nas nossas vidas. Havia quem levasse garrafinhas de café, e bananas, e  batatas assadas, e ovos cozidos, mas o ingrediente mais fiel nas nossas merendas, no começo do ano letivo, eram as goiabas, as grandes goiabas verdolengas que todos podiam apanhar nos fundos das próprias casas. Quarenta alunos carregando goiabas nas pastas impregnava o ar da sala de aulas de um enjoativo e maravilhoso cheiro de goiaba. Eu associei para sempre aquele cheiro delicioso aos marços na escola. Por estes dias, ganhei uma linda goiaba verdolenga, e cheirei-a, enlevada: ela me trazia, à primeira cheirada, todos os outros cheiros, o de cadernos novos, o de lápis recém-apontados, o da tinta com a qual o livro de leitura fora impresso, os cheiros de um passado feliz. Tantos anos depois, o aroma de uma goiaba é capaz de me botar de volta numa sala de aula do passado, e de me fazer lembrar da minha pasta vermelha e dos vexames do primeiro dia de aula.
Para quem está curioso com o final da minha aventura, eu conto: passei a perna em todos os repetentes; fui a primeira aluna da sala. Tive a maior das surpresas quando, no final do ano, a Irmã Diretora me mandou em casa, buscar sapatos, para fazer parte da foto que iria ser tirada com os melhores alunos do colégio. Guardo tal foto com o maior carinho – eu acho que ela tem um pouco de cheiro de goiaba.
Blumenau, 22 de fevereiro de 1997.
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutora em Geografia.
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