Em histórias de nosso cotidiano, apresentamos
hoje mais uma crônica da Escritora Urda, relatando em sua crônica sobre os
costumes e histórias de sua avó Emma.
Minha avó¹ não tinha dentes. Eu passei a conviver
diariamente com ela quando ela tinha se tornado irremediavelmente velha, aos
sessenta anos, e ela me fascinava por ser um poço sem fundo de histórias para
contar, e também pelo fato de não ter dentes.
Minha avó Emma ensinou-me coisas estranhas. Por exemplo, no começo do verão,
naquelas maravilhosas tardes de começo de verão em que os pepinos estavam
começando a formar os frutos no nosso quintal, minha avó fazia coisa
estranhíssima: colhia um pequeno pepino ainda em formação, tenro pepino de
casca verde, e sentava-se à sombra, numa grande pedra que havia no nosso
jardim. Com uma faca afiada, ela ia cortando o pepino em finas fatias
translúcidas, com casta e tudo, e punha-se a mascá-las.
É claro que eu não
arredava do pé dela, totalmente fascinada por aquela pessoa estranha que comia
pepino sem sal e sem vinagre, e COM CASCA!, e podia ficar por horas acocorada
perto dela, a espiar como suas gengivas sem dentes mascavam as finas fatias do
pepino, que ela saboreava com tanto prazer. É claro, também, que em pouco tempo
eu também comia pepino do mesmo jeito que ela, e aquele é um gosto que ainda
hoje tenho na boca, de tão bom que era!
Nas amenas
tardes do começo do calor, minha avó, além de me dar o espetáculo das suas
gengivas desdentadas trabalhando, me deu o incomensurável presente das suas
histórias.
Ela chegara
ao Brasil prestes a fazer sete anos, oriunda da Lituânia, que a gente não sabia
bem onde era e ela dizia que era na Rússia. Hoje sei muito bem que a Lituânia
é, de novo, um país soberano, depois da dissolução da União Soviética, mas,
naqueles idos de 1960, a Lituânia era apenas um lugar nebuloso na minha
Geografia pitoca, que, de certo, só existia nas histórias da minha avó.
Ela se
lembrava muito bem de como as coisas eram lá, e aquilo era muito mais
empolgante do que qualquer livro com histórias de fadas, ainda mais contado por
ela, a comer pepino com casca com as suas gengivas vazias.
Do que ela se
lembrava? Do inverno, com certeza a coisa mais marcante que guardara da sua
primeira pátria. No inverno, andava-se de trenó por cima de muito gelo e, se jogasse para cima um punhado de água com a
mão, a água caía transformada em pedrinhas de gelo. Eu a ouvia contar
totalmente fascinada; daria qualquer coisa para conhecer um lugar assim, onde
eu poderia produzir o meu próprio granizo o inverno inteiro, e não ter de
esperar pelos raros granizos que já vira na minha terra de Blumenau.
Nem tudo
tinha sido fascinação nos invernos de gente pobre da Lituânia no final do
século passado, claro que não. A família da minha avó morava em casa exígua,
que tinha como peça e/ou objeto principal o que ela chama de forno.
Considerando que ela nunca aprendeu corretamente o português, eu creio que com
“forno”, ela queria dizer lareira. Era em torno desse “forno” que a vida da
família decorria no inverno. Dormia-se em torno dele; degelavam-se diante dele
os repolhos e as batatas das parcas refeições, repolhos e batatas contados e
recontados, para que durassem até o final do inverno, sempre mais escassos
conforme a estação se adiantava.
E no forno, pensam
que havia farta lenha para as chamas crepitantes? Nada disso, a lenha era
racionada, o governo lituano só permitia que cada família cortasse pequeno
trecho da floresta por ano, insuficiente para o calor na época das grandes
neves. Era mister secar todo o esterco do gado e armazená-lo, para queimar
quando a lenha acabasse.
Dona Emma e Sr. Oskar Klueger.
O mais
incrível de tudo o que a minha avó contava, porém, era sobre as visitas. Se se
fizesse ou recebesse visita, ficava implícito que os visitantes trariam sua
própria comida, já que o anfitrião não tinha o que oferecer à uma boca a mais.
Seria isto possível, em algum lugar no mundo? Esse fato ficava além da minha
imaginação de menina criada em terra de fartura, e para exorcizá-lo, eu ia
correndo buscar grossa fatias de pão de casa com manteiga e mussi de banana, o
quitute preferido da minha infância. Enquanto eu mastigava o meu pão com mussi,
minha avó, placidamente continuava mascando suas finas fatias de pepino novo, a
olhar, lá atrás dos morros, o Sol que se escondia.
Minha avó não
tinha dentes. Mas como ela sabia contar histórias!
¹ Emma
Katzwinkel Klueger.
Blumenau, 08
de Abril de 1996.
Urda Alice
Klueger/escritora em Blumenau
Arquivo Família Kluger/Adalberto Day
Grata Sr. Adalberto....
ResponderExcluirBelos histórias e memórias...
Abração.
Angelina
Adalberto
ResponderExcluirGosto muito do que a Urda escreve!
Rubens Heusi
Olá, bom dia!
ResponderExcluirPrimeiramente gostaria de parabenizar o autor deste blog, que tem sido de grande ajuda nas minhas pesquisas e por dedicar seu tempo a deixar "vivas" as memórias de Blumenau.
Sou estudante de Comunicação Social na FURB (Universidade Regional de Blumenau), eu e meu grupo estamos fazendo uma pesquisa sobre o cinema na região de Blumenau e Santa Catarina. Gostaríamos de entrevistar algumas pessoas da área do cinema que trabalham na região, para isto, elaboramos dez perguntas sobre o cinema que serão anexadas ao nosso trabalho para conhecimento. Você gostaria de participar? Conhece alguém que o faria?
Desde já agradeço a atenção,
Victória Regina Russi
Olá Adalberto!
ResponderExcluirQuanto tempo... e a saúde?
Seu blog é pura cultura e conhecimento. Prazerosa leitura!
De quebra, os textos da Urda são do mesmo calibre!
Parabéns a ambos!
Lembranças a Dalva e meninas.
Vilma
Linda historia como sempre!!!!!
ResponderExcluirNilton
A infância nos marca de forma incrível, e perdemos muitas histórias pelo fato não compartilhá-las. Bom ter alguém como a Urda, consagrada escritora blumenauense, no consagrado blog, dividindo esses momentos gostosos.
ResponderExcluirHoje em dia, no mundo da comida pronta, industrializada, salinizada aos extremos e com o gosto que a gente quiser, ler pepinos crus gostosos parece até estranho. Coisas boas, que nosso paladar em busca de coisas não saudáveis.
Gostoso também, conhecer essa memória do país de origem. A maioria de nossos avós já são filhos de colonos, e não lembram de muita coisa para compartilhar.
Quem sabe um dia resgatamos aquela conversa em roda, em um final de domingo, longe da TV.
Abs.
Come direbbe mia nonna ... "Nessuno ... Immergere un pollo ... Rende i bambini ... Come ho"!
ResponderExcluirBoa tarde
ResponderExcluirEstas lembranças sempre são marcantes!
Tempos difíceis e tudo se aproveitava.
Lembro que meu pai contava que minha avó durante o período da II.Guerra, para economizar, dividia o palito de fósforo.
Abraço
Eu Sílvio José katzwinkel faço parte dessa "árvore genealógica"agradeço a Uma por trazer ao conhecimento dos descendentes dessa família a narrativa.
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