“O Transporte Arriscado dos Perigosos Garrafões de Ácido ¨
Titulo original no idioma germânico :
¨ DER TRANSPORT DES GEFAEHRLICHEN GLASBALLONS ¨
CONTO DO FOLCLORE COLONIAL BLUMENAUENSE
Autor José Deeke, excerto da sua obra¨ AM LAGERFEUER ¨
Tradução e Adaptação por Niels Deeke, neto de José Deeke
Apresentação : José Deeke desenvolve o presente conto do transporte das bombonas de ácido, certamente fundamentado em ocorrência sucedida nos primeiros anos da colonização - seguramente bem antes de 1875 – porquanto o fato foi documentado sob a forma pictórica de gracejo satírico – um motejo - representado em alusivo painel constante do ¨Gabinete de Raridades¨ que foi exibido na grande “ Exposição Colonial ”, realizada em 18 de julho de 1875, no Clube dos Atiradores ( Schützengesellschaft), organizada por Hermann Wendeburg, na qualificação de diretor interino da colônia.
O texto não menciona que objetivo visava, o dr. Blumenau, com a importação do ácido sulfúrico, da Europa, contudo é de supor-se pretendesse utilizá-lo, diluído, a razão de 10% do vitríolo em água, em tratamento para couros e peles de animais abatidos, ou seja em processo de curtimento.
Um dos motes que caracteriza o enredo funda-se na alegada inépcia que teriam, os imigrados na Colônia, em erguer um pesado, rotundo e roliço ¨garrafão¨ desprovido de alças de sustentação, cuja hábil resolução, pelos astutos canoeiros, é descrita, matreiramente, no Conto.
Bl’au, setembro de 1985
Niels Deeke
O CONTO :
O Dr. Blumenau, certa ocasião, encomendou na Europa, um volume de ácido sulfúrico (1). A mercadoria chegou intacta ao porto de Itajaí, contida em grande bombona de vidro (vide foto adiante).
Entretanto lá o “Garrafão”, como aqui são chamados tais grandes recipientes, permanecia há muito tempo no armazém portuário, pois não havia lancheiro que se dispusesse a trazê-lo até Blumenau, em virtude de considerarem-no, excessivamente, perigoso.
Não deixavam de ter suas razões, pois o garrafão não tinha alça - e era desprovido de qualquer proteção que o envolvesse, além de ser grande, pesado e roliço. Por isso quem desejasse transportá-lo correria o risco de, ao tentar levantá-lo, poder escapar-lhe das mãos e, ao quebrar-se, o seu corrosivo conteúdo líquido fulminaria, inexoravelmente, seus transportadores.
O Dr. Blumenau já falara com todos os pilotos de lanchas que demandavam o porto de Itajaí, tentando contratar seu frete, porém eram unânimes em encontrar uma desculpa qualquer ou, se prometiam trazê-lo, diziam-lhe tal só por obrigação, o que certamente sempre “esqueciam”.
Dessa circunstância tiveram notícia dois jovens, Schmauch e Frank, que preferiam executar qualquer outro serviço a trabalhar as terras de lavoura na colônia, além de saberem aproveitar quando havia oportunidade de ganhar algum dinheiro fácil, que, tão logo fosse possível. convertiam em “líquido”. Por isso resolveram buscar a perigosa carga, desde que obtivessem o proveito que almejavam.
Os dois, naturalmente, conheciam muito bem as qualidades e manias do bom dr. Blumenau e nem pensaram em procurá-lo para fazer-lhe uma proposta. Nem por sombras agiriam da maneira usual ! - Com o homem era preciso lançar mão de especial artifício, se pretendessem lucrar algo.
“Então mãos à obra”, dispôs Schmauch, que, de ambos, era o mais ladino.
“Você, Frank, siga ao porto, esgotes a água da canoa e a empurres para o rio, preparando tudo o mais para a partida. Nesse entretempo, irei ao rancho buscar os remos - porém não te admires se eu demorar bem mais que o necessário - pois tudo o que doravante acontecer fará parte do negócio”
E assim deram início à matreira manobra para obter o frete.
Frank foi ao porto e Schmauch seguiu para o rancho com passos apressados, passando, no trajeto, defronte a venda de Friedenreich e pela casa do Dr. Blumenau. Fez bem em prevenir seu colega de sua eventual demora, pois do dr. Blumenau nada via, fosse em sua casa ou na venda e, conseqüentemente, não estava conseguindo pôr em prática o plano que arquitetara.
Schmauch teve que esperar bastante tempo até que, finalmente, surgiu o momento propício. Do rancho ficou espreitando até que viu aparecer um colono que, ultrapassando o jardim, dirigiu-se à casa do diretor, onde bateu à porta e fez sair o dr. Blumenau para falar-lhe. Schmauch já receava que o colono fosse convidado a entrar na casa, ficando lá dentro sabe-se lá quanto tempo, porém o colono não tardou a iniciar o retorno, e o que era mais conveniente, o diretor acompanhou-o até o portão do jardim, onde ficaram conversando.
Havia chegado o momento oportuno.
Schmauch colocou os remos nos ombros e a passos levemente apressados desceu a rua em direção ao porto, cumprimentando o dr. Blumenau, com alta e sonora voz, a fim de que fosse notada sua presença em trânsito para o rio.
E para sua satisfação tudo correu conforme desejava, pois quando o dr. Blumenau viu Schmauch dirigir-se apressado para o porto, logo deduziu que canoeiro iria à Itajaí e resolveu aproveitar a oportunidade para encarregá-lo do transporte do ácido sulfúrico.
“Hei, Schmauch, espere um pouco - para onde vai como tanta pressa ?” gritou o dr.Blumenau atrás dele.
Schmauch, nisto parou. - “Para onde vou ?” - “Para a Barra! (2). Estou com pressa - portanto até logo, senhor doutor!”
Sem mais Schmauch deu meia volta e se pôs novamente a caminho do porto no rio. Mas o dr. Blumenau desejava receber, de uma vez por todas, o problemático ácido sulfúrico, por isto rumou atrás de Schmauch, pedindo que parasse por minutos - pois estes, conforme se exprimiu, certamente não iriam lhe atrasar a viagem.“Esta bem”, redargüiu Schmauch, afinal parando. “Alguns minutos não farão diferença”. “Todavia se o senhor pretende investir-me de alguma incumbência, já posso lhe assegurar de antemão que tal não será possível executar, pois já tenho uma volumosa carga encomendada que tomará quase todo o espaço da pequena canoa e, por isso, vai ser muito difícil trazê-la.
“Ah, é ? Fico contente em saber que obteve bom frete - entretanto a minha encomenda poderá trazer independentemente das demais, pois trata-se somente de um garrafão que é fácil de acondicionar entre as outras mercadorias.”
“Trata-se de um garrafão? Ah sim, estou entendendo - já ouvi falar a respeito - na certa é o que contém o tal ácido sulfúrico, o qual até agora não houve quem se dispusesse a correr o risco de trazer, por ser muito perigoso.”
A - BOMBONA DE VIDRO, SEM ALÇA, para conter 80 litros, certamente idêntica a que conteve o ácido sulfúrico importado pelo dr. Blumenau e que foi objeto do conto.
B -Bombona de Vidro: Garrafões sem alça, em forma de moringa, que eram utilizados para conter determinados líquidos - como ácido e hipoclorito de sódio - antes do advento das bombonas plásticas de P.V.C..
Nisso o diretor se zangou. “Que bobagem, não há perigo algum - quando se trata de fazer um pouco de esforço a preguiça dos malandros sempre prevalece. Se fosse um garrafão, de seis medidas, cheio de cachaça, da qual durante a viagem pudessem beber a metade, então, com toda a certeza, há tempos o teriam trazido.
“Isto também acredito”, respondeu Schmauch fingindo, e continuou presunçoso :
“Mas meu caso não é, absolutamente, o de temer esse trambolho - e para provar isto, vou trazer-lhe o dito, por mais trabalhoso que seja. Naturalmente, meu amigo Frank e eu, teremos despesas com o embarque e precisaremos ser cuidadosos nesse encargo - motivo porque não poderemos transportá-lo pela tarifa habitual.”
O diretor concordou sacudindo a cabeça. A tarifa era diminuta e neste caso extraordinário, realmente não lhe importava pagar o dobro ou até o triplo. Ademais o frete por mais elevado que fosse não chegaria a um mil réis. Por isto perguntou despreocupado :
“Muito bem, então diga - quanto quer ?”
Schmauch, divertido, sorriu para sem seguida, com um tom de voz denotando afetada pretensão, afirmar condicionando :
“Por oito mil reis nós o traremos”.
O dr. Blumenau num primeiro momento ficou atônito com o vulto da exigência. “Está doido?” gritou para Schmauch. “Pensa que pode me explorar? Nisto está muito enganado!”
“Não quero explorá-lo”, rebateu Schmauch profundamente ofendido. “Só lhe disse o preço mediante o qual posso fretá-lo”. Mas se o senhor não quiser - melhor para mim - pois como já lhe comuniquei, tenho muita carga para embarcar e como Frank é bastante inexperiente para manobrar a canoa, precisarei trabalhar em dobro para compensar sua deficiência.......”
A parte final de suas alegações correspondiam, parcialmente, à verdade, pois Frank ainda não possuía suficiente firmeza ao leme e assim Schmauch assumia por todo o trajeto o timão - somente, as vezes, colocava o remo n’água para avançar ou mudar o rumo da canoa, contudo era Frank quem, efetivamente, remava, esforçando-se por ambos. Quando afirmou que deveria trabalhar a parte que competia a Frank - mentia, porém naquela oportunidade tudo se encaixava perfeitamente nos seus objetivos de fazer com que o doutor lhe acreditasse, desistindo da possibilidade de procurar regatear o preço com Frank, pois para economizar alguns tostões, o dr. Blumenau ainda seria bem capaz disso tentar.
Entretanto o doutor naquele dia perecia estar bastante acessível, pelo menos sua atitude contrariava a de outras ocasiões, apesar de, pechinchando, procurar baixar o preço por mais de uma vez. Contudo como Schmauch permaneceu irredutível, afinal, sujeitando-se, concordou.
Mas se pensou que Schmauch, o qual, de início, demonstrara tanta pressa, continuaria sua corrida ao porto, enganara-se, pois o homem ficou parado como a espera de algo.
O doutor Blumenau olhou-o com surpresa, perguntando desconfiado:
“O que ainda quer ? Pensei que estivéssemos acertados?”
“Correto”, redargüiu Schmauch, “todavia o motivo principal que levou-me a concordar no transporte do ácido sulfúrico é que necessitamos muito do dinheiro....para fazer as compras na Barra.... por isto preciso pedir-lhe, senhor doutor, que nos adiante o numerário do frete.”
O diretor lançou-lhe um olhar de esguelha nada amável, porém depois de pensar um pouco concluiu que enfim nada mais lhe restava que sacar da carteira e sem mais pagou a Schmauch os oito mil reis.
Schmauch de posse do dinheiro, seguiu primeiramente até venda para tomar uma boa talagada, mandando encher duas garrafas com cachaça e só depois com, muita tranqüilidade se dirigiu ao rio, onde Frank o recebeu ansioso para saber o resultado das tratativas do companheiro. Após Schmauch contar-lhe o necessário e de ter-lhe dado uma garrafa da cachaça, ele feliz e satisfeito empurrou a canoa afastando-a da barranca e assim seguiram, confortavelmente e sem esforço algum, deslizando a favor da corrente da água barrenta e amarelada do rio, cujo nível apresentava relativa elevação.
Na viagem, os dois canoeiros, não tinham mínima pressa. Quando, à margem, surgia alguma casa colonial, paravam, principalmente na hora de comer e, desta maneira, levaram dois dias para alcançar a Barra. No retorno, rio acima, foram ainda mais sossegados e em todos os lugares que tinham almoçado, fizeram movas paradas para entregar encomendas, e os destinatários, por sua vez, sentiam-se na obrigação de servir-lhes alguma coisa, pois remar em contracorrente não era possível praticar sem despender relativo esforço.
Dessarte aliviando o carregamento nas diversas escalas de entregas, um belo dia, chegaram finalmente à cidade. A canoa foi amarrada à margem e, então, Schmauch autoritário decretou :
“Frank ! Agora vou procurar o diretor - você permanece aqui cuidando com toda atenção. O balaio deverás esconder bem no fundo da canoa, a fim de que ninguém o veja - a vara (4) pode ficar onde está”.
Frank olhou o companheiro sem entender coisa alguma, e desanimado perguntou:
“Porque devo ficar novamente aqui sentado sozinho, esperando aborrecido por você sabe-se lá por quanto tempo, se podemos sair daqui juntos levando duma só vez este garrafão para cima?”
Schmauch olhando-o com desprezo e a sacudir a cabeça denotando a falta de perspicácia do colega, respondeu-lhe:
“Você é mesmo muito idiota. Pensa que te deixo aqui postado por brincadeira? Não percebes que quero ver se arranco do homem mais algum dinheiro? Já gastamos lá na Barra tudo quanto apuramos - por isto vou tentar conseguir uma bebida extra!”
Dito isto Frank compreendeu e sorriu cordato, garantindo que podia contar com seu empenho.
Schmauch seguiu o caminho para o Stadtplatz (3). Entretanto não era tão fácil galgar a barranca e seguir a estrada, pois a enchente dos dias precedentes depositara uma grossa camada com cerca de quinze centímetros de lodo, fazendo com que o canoeiro precisasse arregaçar as calças até acima dos joelhos. Porém mesmo assim continuava difícil caminhar num chão escorregadio, onde os pés patinavam, deslizando em todas as direções.
Não foi preciso a Schmauch procurar muito pelo diretor. Ele estava na venda de Friedenreich, acompanhado de algumas pessoas. O dr.Blumenau quando deu com a presença de Schmauch, fez uma cara intrigada, dizendo :
“Ué ! Onde está seu companheiro e o garrafão de ácido sulfúrico?”
“Estão, ambos, na canoa lá em baixo”, respondeu-lhe Schmauch.
E o doutor, mais que rápido, inquiriu :
“Então porque não trouxe consigo a tralha para cima ?”
“Trazer para cima?” Redargüi surpreso, repetindo as últimas palavras do diretor. “Sobre isto nada combinamos, senhor diretor - o transporte da mercadoria foi procedido como de costume, de porto a porto.....”
Nisso o diretor o interrompeu, cortando-lhe as palavras, zangado.
“Já sei onde isto vai acabar - querem me depenar novamente. Mas desta vez não vou cair na armadilha e depois, voltando-se para Friedenreich e os demais presentes, disse:
“Vamos descer à barranca do rio e, de uma vez por todas, inspecionar este tão perigoso garrafão!”
E assim todos o seguiram. Foi uma verdadeira romaria, seguindo ao porto.
Schmauch, com um sorriso matreiro, caminhava logo atrás do cortejo. Quando chegaram à metade do trajeto da margem do rio, onde começava a camada de lodo, já era possível ver as fisionomias carrancudas e contrariadas do pessoal - mas, todos, afinal, se dignaram auxiliar - tiraram os sapatos, arregaçaram as calças e, com disposição, atravessaram o pastoso e mal cheiroso lodaçal, até a canoa.
Lá estava a pequena embarcação da qual Frank, mal humorado, sentado à proa e fumando seu cachimbo, tomava conta . O carregamento era somente o garrafão - nada mais continha .
O diretor, entendendo tudo lançou um olhar de través para Schmauch. Entretanto, contendo-se cuidou para não deixar escapar uma só palavra a respeito da mentirosa, grande e volumosa, carga que Schmauch alegara que compraria na Barra. Sabia muito bem que quanto mais esclarecimentos exigisse, maior seria na certa a gozação, para aquele que caíra no ardiloso prejuízo que os canoeiros lhe aplicaram, com o engodo da alegação de pagamento adiantado para adquirir encomendas.
“Vejam só?” Disse por fim, “trazer o garrafão para cima, realmente, não deverá ser tão perigoso...!”
Os acompanhantes igualmente assim pensavam, e um, mais afoito. começou a tentar desembarcar o garrafão.
Contudo não conseguia e por bem pouco a pesada, escorregadia e bojuda bombona de vidro quase lhe escapa das mãos. O homem ficou visivelmente aliviado quando, a muito custo, conseguiu devagar tornar a baixá-la no fundo da canoa. A tentativa empreendida por uma dupla foi ainda pior sucedida, pois a canoa balançava e para desembarcá-la na margem escorregadia e lamacenta, não havia quem se atrevesse.
Depois desses insucessos o dr. Blumenau pareceu reconhecer que a operação não era tão fácil quanto supunha e por isto, resignado, volveu-se, outra vez para Schmauch, o qual isentando-se de qualquer participação, ficara afastado observando, e perguntou-lhe :
“Como foi que vocês conseguiram embarcar o garrafão na canoa?”
“Ah , isto lá na Barra não foi tão difícil”, respondeu Schmauch tranqüilo. “Para erguê-lo, lá existe o trapiche e não é preciso incomodar-se com a lama”.Nisso o doutor ficou pensativo.
“Pois é”, disse finalmente, “ está parecendo que é mesmo quase impossível suspender esta coisa sã e salva barranca acima. Não nos restará outra alternativa que abrir este monstro de garrafão e transferir o conteúdo para garrafas menores, fáceis de transportar.”
Esta solução, entretanto, era justamente a que menos agradava a Schmauch, que após ouvi-la, aproximou-se interessado, dizendo, para o diretor, com uma entonação de voz na qual exteriorizava convencimento:
“Tenho lá minhas dúvidas, pois esta operação me parece um tanto complicada, porque o acido é volátil e a transferência para recipientes menores poderá provocar um acidente grave. Por isso eu lhe proponho que nos ofereça uma dúzia de cervejas, pelas quais eu e Frank levaremos o garrafão lá para cima.”
“Mas logo uma dúzia de cervejas?” Rebateu severo o doutor. “Para vocês nada é suficiente ! Como se não bastasse uma garrafa para cada um !” Depois, mais sereno, continuou :
“Muito bem. Podem beber a dúzia de cervejas lá no Friedenreich por minha conta. Mas cuidado com o garrafão, pois vocês para tomar a dúzia de cervejas, são capazes de cometer a maior das imprudências, correndo o risco de banharem-se no ácido sulfúrico! Preciso muito deste líquido e seria desastroso que após tanto trabalho para trazê-lo até aqui, se perdesse tudo no final.”
Mas Schmauch com um sorriso maroto sacudiu a cabeça.
“Não se preocupe doutor. Nós faremos a operação sem dor.”
Em seguida pulou para a canoa e gritou para seu colega :
“Frank, agora podes tirar o balaio”.
E foi então que todos viram como se descarregava o trambolho - e não era, em absoluto, nada perigoso.
Primeiramente colocaram o balaio ao lado da bombona, em seguida pegaram-no pelo gargalo, içaram-no e deixaram-no novamente baixar, lentamente para dentro do balaio. Após atravessar a vara pelas duas alças do dito balaio e, os dois, Schmauch e Frank, cada qual apoiando sobre os ombros uma das extremidades da vara, lá se foram tranqüilamente subindo pelo lodaçal.
Toda a manobra deu-se muito rapidamente e os espectadores ficaram mudos assistindo tão elementar solução para a questão do transporte. Quem mais pasmo estava, evidentemente, era o dr. Blumenau, que lá permanecia estático e só quando os demais já se tinham posto em movimento para acompanhar Schmauch e Frank, conseguiu recuperar-se.
“Friedenreich”, gritou ele, e quando este se volveu, o doutor apontou com o indicador esquerdo para sua própria fronte, e com a mão direita, estendida, mostrava o garrafão balançando no balaio e repetia, “Friedenreich ! Friedenreich!” Mais não disse, porém era fácil adivinhar o que sucederia.
Não havia dúvida, o bom doutor Blumenau caíra, por inteiro, nas mãos dos dois espertalhões. Depois de terem depositado o garrafão de ácido sulfúrico no rancho do dr. Blumenau, foram para a venda de Friedenreich e, com a cara mais lavada deste mundo, pediram por conta do diretor uma dúzia de garrafas - de cerveja inglesa - que Friedenreich inicialmente não quis servir receando a fúria do diretor, todavia Schmauch insistiu categórico e finalmente o vendeiro cedeu.
Passado algum tempo, depois que a forte cerveja já fizera seu efeito, o doutor entrou na venda e os beberrões o convidaram a participar. Naturalmente recusou - muito ao contrário continuou a repreendê-los - pois imaginava que estavam bebendo a cara cerveja com o dinheiro apurado pelo frete por isso admoestou :
“Uma dúzia por minha conta, sem dúvida, seria mais que suficiente, não precisavam gastar suas poucas moedas, ganhas no frete, bebendo esta caríssima cerveja.”
O momento aprazado chegara, no entanto, Schmauch, nestes negócios não se deixava assustar.
“Nossas moedas ?” Respondeu, e fingindo espanto emendou
“Não, senhor doutor, me parece que, em sua opinião, nos acredita ainda possuidores de dinheiro, porém do dinheiro do frete, desde que partimos do berço das embarcações junto ao trapiche da Barra, não tivemos mais vintém algum em nossos bolsos. Contudo aqui não precisamos de dinheiro - a cerveja quem paga é o senhor... é aquela dúzia oferecida...- e por isso, especialmente, eu o brindo :
“Saúde! Senhor diretor”. E nisso sorveu, novamente, um grande gole da caneca, no que foi imitado por Frank.
“O que?” Gritou reclamando o doutor a olhar para Friedenreich.
“O senhor serviu, a estes dois, cerveja inglesa por minha conta? Cerveja local, cerveja daqui, quis dizer! - Estas que eles bebem não pagarei !”
Friedenreich somente sacudiu os ombros e apontou para Schmauch que então estampava um rosto representando muita dignidade e a fim de impressionar mais ainda, levantou-se, empertigando toda sua estatura :
“Como disse ?” Exclamou no mesmo tom com que se exprimira o dr. Blumenau. “Cerveja local, foi o que o senhor quis dizer? - Cerveja local ? - Não, senhor diretor, disto não falamos - não poderia imaginar outra que não fosse cerveja inglesa e sempre a acreditei como a qualidade que foi oferecida! Por isso torno a brindá-lo:
Saúde senhor diretor! Viva o inglês, viva a inglesa.....”
O diretor já não ouvia mais - Schmauch cativara as risadas dos presentes e nada mais lhe restava do que retirar-se o mais rápido. Contam que, durante não poucos dias, seu humor permaneceu péssimo.
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O episódio com o garrafão de ácido, foi, nas festividades do “Schützenfest” seguinte, explorado pelo “Consórcio do Gabinete de Raridades” , onde sobressaia a figura do “Schirmonckel”, quando retrataram, em quadros, a trapalhada do pessoal que participara na tentativa do desembarque da famigerada mercadoria, mostrando o grupo de calças arregaçadas, patinando na lama - destacando o dr. Blumenau logrado, em posição de perdedor inconformado, apontando com o indicador esquerdo sua testa e com sua mão direita dirigida no sentido de Schmauch e Frank, que carregavam comodamente o garrafão. Sob o painel, pintadas, em letras garrafais, duas palavras : “Friedenreich ! - Friedenreich!”
O dr. Blumenau, quando viu o “belo serviço” do “Gabinete de Raridades” (5) já há tempos esquecera sua ira, dizem que até riu com muito prazer e inclusive teria dado uma gratificação extra ao grupo responsável pela feitura do peça pictórica.
Schmauch e Frank, juntos, ainda pregaram muitas peças, onde o primeiro sempre era o mestre e Frank o aprendiz. Por isto Schmauch quis reforçar ainda mais os laços de amizade com seu colega, transformando-os em parentesco. Para tanto incentivou o casamento de Frank com uma cunhada já bastante idosa, que vivia em sua casa.
Frank, a princípio. concordou e o casamento foi marcado para a manhã de um domingo. No dia aprazado, estavam todos em grande atividade da casa de Schmauch, para comemorar condignamente o enlace que dar-se-ia dentro de poucas horas e ninguém se admirou que Frank não houvesse aparecido, pois morava perto dali e na noite anterior, festejando a despedida de solteiro, bebera além da conta, indo para casa encharcado de álcool.
Como imaginassem que Frank estivesse dormindo a curtir a ressaca, prosseguiram nos preparativos da festa entretanto quando já passava do horário previsto, e estando a noiva arrumada aguardando esperançosa o noivo, e nada de Frank aparecer, resolveram ir à sua casa acordar o dorminhoco.
Foi quando tornou-se a constatar a costumeira ingratidão do aprendiz com o mestre, pois até então Schmauch vivera na convicção de que suas relações com Frank continuassem como no passado e não percebeu a modificação que devagar processava-se pela emancipação da dependência do colega às suas determinações. Enfim, quando chegou à cabana de Frank, viu pregada, sobre a porta, uma larga tábua, onde, com giz vermelho estava escrito em grandes letras bem legíveis :
“Frank não estará em casa hoje. Foi para Itajaí a negócios”.
Passados alguns dias Frank retornou, porém, depois desta derradeira trapalhada, a amizade entre os dois colegas ficou abalada, jamais tornando a ser como dantes.
FIM
NOTAS DE FIM por NIELS DEEKE
1) Ácido sulfúrico. Quím.1. Líquido viscoso, incolor, corrosivo, denso, enérgico desidratante e ácido muito forte, com aplicações extensas e variadas. [Fórmula.: H2SO4] ]
2) Barra . Barra do Rio Itajaí Mirim.. Barra do Rio. Entreposto e trapiche, na margem direita do Itajaí Açu, logo após a foz do Itajaí Mirim. Na verdade o topônimo é barra do rio Itajaí Mirim. O local exato esteve ocupado pela Fábrica de Papel Itajaí. O trapiche e instalações pertenceram “particularmente” ao dr. Blumenau, onde cada novo imigrante era registrado no “Livro de Registro de Imigrantes da Colônia Blumenau”, perdido no incêndio da Prefeitura de Blumenau em novembro de 1958, cujos assentamentos foram lançados pelo menos até 1860.
3) Stadtplatz : Centro Urbano. Na verdade, o canoeiro seguiu do porto, em direção à Kolonie Direktion, ou seja a sede administrativa da Colônia Blumenau, sita, então, defronte á atual praça Hercílio Luz, ao, lado da qual Friedereinch possuía a sua venda ( Casa de negócios e bar)
4) Vara. Instrumento. Haste de pau direito e comprido com cerca de quatro metros, chamada varejão .Tal vara foi muito utilizada, na região do Itajaí Açu, pelos balseiros que extraiam areia, até por volta de 1950. Nos locais de pouca profundidade e de muita correnteza não havia melhor instrumento para fazer progredir a embarcação. O canoeiro postava-se à proa, enfiava a vara até o fundo do rio e seguia em direção à popa, caminhando sobre uma tábua em sentido longitudinal desde a proa até a popa, empurrando o peso do seu próprio corpo contra o varejão e forçando para baixo, deslocando deste modo a embarcação para vante. E assim continuamente repetia a operação, que pelo esforço, imprimido sobre o varejão- feito geralmente de pequiá, cabriúva ou mesmo peroba - o fazia vibrar intensamente. Utilizavam-no também para manter fundeadas as balsas no meio do rio, quando espetadas ao fundo recebiam, na superfície, as amarras da balsa, substituindo as poitas ou âncoras e ainda para afastá-las dos taludes das barrancas. Na região Amazônica e na do Pantanal, a dita Vara, também é conhecida por Zinga : Vara comprida, usada na propulsão de embarcações em lugares de pouco fundo. Remo usado como leme na popa da canoa ou da jangada.
5) Consórcio do Gabinete de Raridades: Grupo encarregado da elaboração de representações cênicas, paródias, alegorias cômicas, encenações satíricas e apresentação de pintura de quadros, que foram expostos nas festividades da primeira Sociedade de Caça e Tiro de Blumenau, (Schützengesellschaft) fundada a 02 de dezembro de 1859, na comemoração da data de aniversário do Imperador D.Pedro II. A organização do evento esteve a cargo do Pastor Rudolf Oswald Hesse, e deu-se onde presentemente encontra-se o “Tabajara Tênis Clube”, cujo acontecimento foi lembrado nos “Contos do Velho Colono Blumenauense”, páginas 71 à 75, da obra “O Município de Blumenau e a História de seu Desenvolvimento” - por José Deeke. Gabinete de Raridades referia uma das “Exposições - Mostras”, realizada em 18 de julho de 1875 - organizada por Hermann Wendeburg, na qualificação de diretor interino da colônia, classificada como a grande “Exposição Colonial” no Clube dos Atiradores - oportunidade em que o dr. Blumenau encontrava-se no Rio de Janeiro.
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Beto Day
ResponderExcluirO Dr. Niels sempre trás assuntos interessante neste blgog. Mesmo acompanhando de longe, mas admiro o teu trabalho e muita gente por aqui conhece pois indiquei. Em visita a Suíça um dia desses a trabalho, mostrei aos amigos de lá, nossa Blumenau através do teu Blog.
Toda cidade adora e deve ter seus folclores, mitos, tradições, pois isso são fatores que deixam a população sempre na expectativa de ser ou não ser verdade.
Neste conto creio ser do Avô do Dr. Niels, o senhor José Deeke, ele nos relata um assunto interessante, dos garrafões ou bombonas de ácido, - interessante.
O que chama atenção neste conto, é que são envolvidas pessoas como Dr. Blumenau, Hermann Wendeburg, William Freidenreich ,Schmauch o que nos suscita mais curiosidades.
Nota-se também que dr. Blumenau era brabinho (parece alguém que conheço), mas claro ele o mandatário da cidade não podia ser enganado.
Mas a faceta ou conto é muito interessante, e podemos dizer então que temos bons contos e folclores em Blumenau.
Um amigo me contou que o Dr. Niels preserva um grande acervo catalogados em revistas, documentos, excertos e outros. Bom para nós que aos poucos ele está disponibilizando para nossa comunidade.
Bacana...parabéns a família Deeke que nos orgulha e parabéns a ti beto
Ademar Martins Hobold
Pará
Caro Adalberto, há alguns anos li a respeito do transporte do tal ácido, mas foi muito bom lê-lo novamente, agora com mais atenção nos detalhes. Cá entre nós: que tremendo cara-de-pau, este Schmauch! Onde já se viu um jovem se aproveitar desse jeito de um quase sexagenário? E o Dr. Blumenau, como foi cair na lábia dele? Devia ter dinheiro saindo pelo ladrão - sugado pelo ladrão parece mais adequado! - ou a Bertha havia sugado-lhe a razão. Brincadeiras a parte, confesso que fiquei curioso com o tal Schmauch e fiz uma rápida pesquisa sobre quem possa ter sido. O sobrenome aparece em 1861, quando aconteceu o casamento de Carl Emil Schmauch, 25 anos, com Marie Magdalene Stock - pode ter sido Stark ou ainda Staak, cf registros posteriores -, de 16 anos de idade. O evento relatado por José Deeke aconteceu antes de 1875, mas não sabemos quanto antes. Em 1874 este Schmauch teria 38 anos de idade. Poderia José Deeke ter se referido a ele como sendo um 'jovem'? Talvez sim, talvez não, mas não podemos excluir totalmente a hipótese, pois neste caso, ainda assim ele seria, de fato, 'bem mais jovem' do que o Dr. Blumenau. Também poderia se tratar de um filho deste casal, mas não encontrei um do sexo masculino que se encaixasse no perfil. Primeiro nasceram Marie Anna, em 1864, e Anna Alma, em 1868, depois Carl Emil, em 1873, Robert Adolph, em 1875, Hermann Luis, em 1878, e Christoph Oscar Hermann, em 1880. Como parece não ter havido outro ramo Schmauch em Blumenau naquela época, é possível que o Schmauch do relato tenha sido mesmo este Carl Emil, um 'jovem' que à epoca dos acontecimentos já estaria na casa dos 30. Nada encontrei referente ao sobrenome Frank - somente Franke. José Deeke nasceu em 1875, ou seja, depois do evento do qual trata o relato. Caso tenha tomado conhecimento deste pela tradição oral, não podemos descartar a hipótese de que a última letra do sobrenome tenha se perdido no tempo. Se isso aconteceu, os candidatos mais fortes a ex-amigos de Schmauch poderiam ser Christian Gotthard Carl Franke, nascido em 1855, que casou com Ida Pauline Hertel, ou seu irmão Carl Ernst, nascido em 1857, que casou com Emma Müller. Ambos teriam menos de 20 anos quando os fatos ocorreram. Desde ponto de vista ambos se encaixam no perfil. Grande abraço, Wieland Lickfeld
ResponderExcluirBom dia, Sr Adalberto
ResponderExcluirMuito bom seu blog. Parabéns
Tenho dois desses garrafões de ácido. Tens idéia de quantos anos devem ter estes garrafões ?
att
Olá Adalberto.
ResponderExcluirGostei muito do seu blog e principalmente da história do transporte dos garrafões, dei muitas risadas dos malandros.
Eu tenho sete destes garrafões e que comprei de um senhor de oitenta anos e que fabricou vinhos de laranja (neles) por 60 anos, esses garrafões já eram do pai dele antes dele nascer em 1928 e com certeza são do final do ano de 1800.
Grande Abraço
Ricardo Kliwood Climaco
Curitiba – PR – rclimaco@rclimaco.com.br