Urda Alice Klueger é, de ambas as suas famílias, da primeira geração a nascer fora da agricultura. Descende de agricultores vários, colonizadores ou não. Seu pai, Roland Klueger, neto de um alemão imigrante e filho de uma imigrante lituana, nasce no então já município de Blumenau/SC, onde se cria na labuta da terra, sendo dela afastado quando a Segunda Guerra Mundial o leva para o Exército e o tira do seu amanho.
A mãe de Urda, Minervina Klueger, nascida Soares de Souza, descendia de antigos agricultores da região do grande município de Tijucas/SC, e é também no período da Segunda Guerra Mundial que vai aportar a Blumenau, atraída pela crescente industrialização da região, coisa iniciada já desde os princípios do século XX, e vai ocupar um posto na indústria têxtil. Há que se acrescentar que as tantas centenas de pessoas que a essa altura trocavam a vida da lavoura pela da fábrica já estavam a cumprir um desígnio governamental e capitalista:
A criança Urda Alice Klueger vai guardar intensamente suas lembranças desde os três anos de idade. Mesmo na vida adulta, ela tem muito vivas as cenas, as impressões e as sensações daquele inverno, outono e primavera de quando tinha tal idade, sensações e impressões que envolvem desde a fragrância e a luminosidade de morangos maduros na horta familiar, até a sensação mágica que era ver os raios de sol rasgarem a névoa das manhãs daquele setembro. Um mundo muito mágico se descortina para a menina, um mundo que vai resultar, ao longo da vida, em inúmeros escritos. Tal magia vai se acentuar com o cultuamento das festas de Natal e de Páscoa por sua gente.
A ESCOLA
A Escola São José, situada ao lado da Igreja Nossa Senhora da Glória, no bairro Garcia(Glória), Blumenau/SC, fora criada a partir de doações da comunidade e era gerida pela comunidade, tendo um diferencial, portanto, em relação às escolas públicas e particulares que existiam na época, na cidade. Fora a comunidade quem contratara as Irmãs da Providência, que eram as responsáveis pelo ensino na escola, e que no Brasil tinham vindo da cidade de Itajubá/MG, mas que tinham ascendência francesa. Fora na França que a ordem fora fundada por um religioso chamado Beato João Martinho, que depois se dirigira à China como missionário, e a presença de diversas coisas francesas e mineiras eram uma constante na vida do colégio situado em colono bairro operário de ascendência alemã, onde tais novidades funcionavam como um sopro vivificante. Vale lembrar que o colégio fora construído com as doações das comunidades católica e luterana do bairro, e que era freqüentado pelas crianças de ambas as religiões, e de outras, se as houvesse.
Quando a mãe de Urda se dirige ao colégio para matriculá-la, já havia passado o período de matrículas e não havia mais vagas no então chamado “primeiro ano”. Como a menina já estava prestes a fazer oito anos, dizia o bom senso que ela não poderia esperar por mais um ano para começar a frequentar a escola, e a solução encontrada pela mesma foi matricular a nova aluna junto com o primeiro ano repetente, sala que reunia todos os alunos que de alguma forma não conseguiam a aprovação anual para passar para a série subseqüente. Alguns dos alunos já estavam a seis ou sete anos repetindo o primeiro ano, e naquele 1960 completaram 14 anos e saíram da escola para irem trabalhar nas fábricas, sem estarem, absolutamente, sequer alfabetizados.
A professora daquela turma era a Dona Maria Pisa, de origem italiana, natural da vizinha cidade de Ascurra/SC, experiente professora que sabia orquestrar um certo caos que havia naquela sala problemática. Ela tinha a informação de que todos os alunos eram repetentes, e a presença de uma aluna novata foi-lhe uma surpresa, mas que ela soube administrar muito bem.
A Irmã Maria Conceição, diretora da escola, avisara à mãe de Urda que havia necessidade de a menina ser alfabetizada antes de começarem as aulas, para que pudesse acompanhar o primeiro ano repetente, e tal fora feito rapidamente, em algumas semanas. Como aquela sala era considerada “alfabetizada”, não recebia ela uma cartilha de alfabetização, como então se fazia com alunos iniciantes, e Urda não chegou a ter tal experiência. Recebeu logo um “primeiro livro de leitura”, e com a parca e rápida alfabetização que tivera, levou o livro para casa e o leu inteiramente no primeiro dia, não se limitando às lições escolares, mas lendo a introdução, comentários e tudo o mais que houvesse no livro, enquanto seus colegas repetentes, na maioria, chegaram ao final do ano sem terem conseguido ler todas as lições. Começara, assim, para Urda, a grande aventura da leitura, coisa que a acompanharia por toda a vida.
Aquele primeiro ano ficou na lembrança de Urda como um tempo um pouco confuso, em que participou de uma peça de teatro realizada no colégio (As velhas), relacionou-se com muitas crianças e jovens de diversos pensamentos e procedências, que havia na sua sala de aula, procurou fazer todas as coisas que a paciente professora esperava de cada um deles – e que teve a imensa surpresa, no final do ano, de ser chamada para tirar a fotografia oficial dos alunos que tinham tirado o primeiro lugar em cada classe.
Nas férias de final de ano ela já sabia o suficiente para ler O Inferno, de Dante, que vinha na revista A família cristã, não se limitando, mais, a ficar admirando as ilustrações. Na verdade, já estava lendo tudo a que tinha acesso, tanto livros quanto a própria natureza, e tal incluía as trovoadas, as enxurradas, as variações das estações, os Natais, as brincadeiras com os primos – enfim, o mundo era um livro aberto para muitas leituras, e Urda se servia dele para criar um grande arsenal de sensações e experiências que mais tarde lhe facilitariam muito a escrita de muitas centenas de textos e de milhares de páginas.
Os anos seguintes foram de normalidade na escola. As segunda, terceira e quarta séries foram com alunos não repetentes, com professoras freiras (Irmã Rosária, Irmã Simone e Irmã Adalgisa) que se dedicavam às suas classes com as pedagogias corretas para cada idade. Havia uma classificação mensal dos alunos, onde Urda recebia, invariavelmente, o título de primeira aluna da sala. No único mês em que perdeu tal título para outra criança (já não se lembra em qual ano) tomou um susto – era possível ter outros alunos à sua frente – e ela teve como que uma tomada de consciência prematura, onde se deu conta de que, para manter a posição que tinha na escola não havia apenas que deixar a vida seguir: era necessária muita aplicação e estudo para manter sua situação privilegiada.
E aqueles breves anos passaram, com Urda sempre estudando e lendo muito. Lia tudo o que havia na sua casa (inclusive diversos romances católicos que ainda tinham o “Imprimatur” da igreja, coisa oriunda lá da Contra-Reforma do século XVI) e que lhe deram vislumbres da História, pois eram romances que abordavam a revolução mexicana e tempos medievais, entre outros, e lia o que havia nos vizinhos, nos parentes, e na própria escola, o que incluía as enciclopédias Barsa e Delta Larousse inteiras. A própria escola era uma incentivadora da leitura, e os alunos conheciam importantes poemas e outros textos, além de cantos de diversas regiões do Brasil e também em outras línguas, como o espanhol e o italiano. Tanto culturas diversas chegaram à menina através das aulas de canto, como também mistérios de outras línguas: no futuro, em ocasiões em que precisou entender línguas diferentes em viagens, por exemplo, muito lhe valeram o conhecimento de frases e entonações trazidas à tona desde lá das mais distantes lembranças da escola. Ela crê, até hoje, que sua escola primária foi de grande excelência.
O ACIDENTE
Na imagem acima de 1963 (Local do acidente) mostramos a partir da Rua 12 de outubro uma antiga transversal da Rua da Glória, onde hoje verificamos uma mudança significativa. Com a demolição das casas, e o ribeirão Grevsmuhl desaparecendo com as tubulações, é construída a nova Praça Getulio Vargas, o Terminal Garcia, e o CSU – Centro Social Urbano e outros pontos comerciais.
Rua 12 de Outubro
Urda Alice Klueger foi a oradora da turma que se formou no curso primário da Escola São José em 1963, tendo redigido, sozinha, o discurso. Sua professora ficou bastante admirada por ela não ter pedido ajuda para tal.
Após a formatura, ainda haveria uma festinha e algumas atividades no colégio, e as crianças já formadas ainda iam até lá para ensaiar algumas coisas – foi numa dessas tardes que Urda, saindo do colégio com uma bicicleta emprestada, sofreu grave acidente, caindo de uma ponte dentro de um ribeirão, quebrando o tornozelo em mais de um lugar. Após permanecer alguns dias no hospital, a menina amargou um verão de gesso, sem as naturais travessuras da idade, ficando com sequelas que a acompanhariam pelo resto da vida.
Foi um verão inteiro de apenas leituras – sua mãe a carregava no colo até a sombra de uma árvore, a colocava sobre uma colcha e lhe deixava um livro, normalmente algo piedoso, que era o que a Igreja Católica recomendava. Foi naquele verão que Urda vai passar a se interessar cada vez mais pela França, principalmente depois de ler a história de um santo católico chamado João Vianney, homem humilde, que vivia com sobriedade, mas que foi um grande pensador. Sua biografia estava recheada de vívidas paisagens e costumes franceses, e a menina passa a se interessar cada vez mais por aquele país. Naquela ocasião, ela tinha 11 anos - seu sonho de consumo era chegar aos 12 anos, quando então poderia se associar à Biblioteca Pública Municipal Dr. Fritz Mueller, da sua cidade de Blumenau.
No final daquele verão, quando ficou livre do gesso, Urda estava com o tornozelo irremediavelmente torto, e nos dois anos seguintes, sem conseguir firmar bem o pé no chão, sofrendo muitas quedas, ficou sob o cuidado de massagistas, que faziam o que se sabia naquela altura para resolver um caso assim. Dois anos de aula foram perdidos, mas Urda crê que ganhou, e muito, ficando em casa lendo durante aquele período. Já que não podia andar com segurança, a menina acostumou-se a usar da bicicleta com segurança, e montada em tal veículo, num instante passou o tomar o rumo da Biblioteca Pública, que agora, com 12 anos, conquistara o direito de frequentar. Só se podia pegar um livro emprestado por vez, e então Urda ia lá quase todos os dias trocar de livro. Ela se lembra como começou a ler pela seção infantojuvenil da Biblioteca, que era composta de diversas prateleiras – lia os livros por prateleira, um depois do outro – em pouco tempo, esgotara aquela seção e passara para os livros para adultos.
Ela não conseguia dormir enquanto não terminasse o livro que estava na sua casa, o que criava sérios problemas com a sua mãe. Inúmeras vezes ela disfarçou, fez que dormia, esperou a própria mãe dormir, para então voltar a acender a luz e terminar o livro. Era este o motivo que fazia com que sua mãe não permitisse que ela fosse à Biblioteca Pública todos os dias – a mãe exigia certos dias de folga, onde ela deveria fazer outras coisas. Urda guardou, no entanto, os muitos mistérios vistos e lidos na natureza e na vida durante suas idas e vindas à Biblioteca, como as coisas da natureza, as mudanças das estações, a análise das casas e seus jardins, para as quais imaginava histórias, durante suas andanças de bicicletas. Algumas vistas de morros distantes, que ela classificava como que “da cor da nostalgia”, como que lhe tiravam o fôlego e lhe faziam disparar o coração – preparava, ela, os cenários para seus futuros livros e outros escritos.
Depois que passou tal fase de ler “por prateleira” foi que Urda se deu conta de quanta coisa inútil e sem valor ela lera – e também, de como no meio de tantas coisas sem importância, foram surgindo os livros que realmente valiam à pena: Dostoiewski, Érico Veríssimo, dentre tantos outros. O saldo foi positivo: aqueles anos lhe trariam conhecimentos que ela não teria adquirido de outra forma.
Vale aqui citar um fato acontecido mais de 30 anos depois, referente àquele acidente de infância: num dia em que estava sem assunto para a crônica de jornal onde trabalhava, Urda contou, em parcas 80 linhas, o que então acontecera, sob o título de “Por causa do Papai Noel”. Mais tarde tal texto foi publicado em um dos seus livros de crônicas, e despertou o interesse da cineasta Mara Salla, que criou o filme homônimo (curta metragem de 15 minutos) a respeito do acidente de Urda, filme que foi premiadíssimo, tendo participado de mais de 40 festivais no Brasil, além de um festival em Lisboa/Portugal, Moscou/Rússia e Seul/Coréia.
Arquivo : Urda Alice Klueger e Adalberto Day
Arquivo : Urda Alice Klueger e Adalberto Day
Exelente,sua forma de contar os fatos me levou viver e ver as imagens desta personalidade de força intima e abençoada por nosso criador.
ResponderExcluirParabens por seu trabalho.
Sexta feira passou uma mulher de bicicleta por mim. Parecia Urda. Muito bom ler sobre ela.
ResponderExcluirAlfredo Pintarelli
ResponderExcluirGrande escritora e amiga desde os tempos da Caixa Econômica.