
- 1961. Eu só me dei conta que a coisa era séria mesmo quando ninguém foi para a aula. Estava no segundo ano primário, e para qualquer criança daquele tempo faltar a um dia de aula sem estar muito doente era um sacrilégio.
- 1961. Eu morava na Rua Antonio Zendron, em Blumenau, e enxurradas eram coisas comuns e corriqueiras. O ribeirão da nossa rua com facilidade transbordava nos dias de trovoada, e corria rua abaixo com toda a velocidade, e muitas vezes voltávamos da escola com água pelas canelas, segurando-nos nas cercas para que a enxurrada não nos carregasse. Há que se lembrar que crianças de segundo ano ainda são pequenas, passíveis de serem levadas por águas furiosas. Um pouco mais adiante, creio que um ou dois anos depois, uma menina da nossa rua foi mesmo levada pela enxurrada e acabou morrendo. Era uma loirinha gêmea, e já não sei mais o seu nome. Mas lembro que seu corpo foi encontrado no terreno do seu Maneca dos Tubos, que ficara alagado com as águas do nosso ribeirão.
Mas estávamos em 1961, e a coisa estava sendo MUITO mais séria. Não era só o nosso ribeirão que transbordara: transbordara, também, o Ribeirão Garcia, que cortava todo o nosso bairro, e o Rio Itajaí, o grande Itajaí-Açu, que lá na aurora dos tempos escavara um Vale chamado Vale do Itajaí, onde era o nosso mundo.

Penso que os adultos aquilataram o terror quando, uma a uma, as rádios foram saindo do ar, todas elas atingidas pelas águas do rio da cidade, que não parava de crescer. Sobrou uma, que funcionava em prédio mais alto: a Rádio Clube, onde o radialista Nelson Rosembrock ficou no ar, ininterruptamente, durante 72 horas. Crianças reagem diferentemente de adultos. Eu penso que acabei dormindo, quando chegou a noite. Tenho certeza que minha mãe, no entanto, deve ter ficado acordada enquanto agüentou, rezando silenciosamente pela volta do meu pai.
Estádio do Amazonas no bairro Garcia totalmente destruído pela enxurrada do dia 31/10/1961.Foram encontradas Três crianças no salão e alambrados, Vitimas fatal – eram irmãos que moravam na Rua Emilio Tallmann. Também morreu nesta enxurrada, o soldado Moacir Pinheiro.
Aquela enchente durou um dia, dois, três, penso que quatro, também já não lembro, e por todo o tempo esperamos para saber do meu pai. Onde estaria ele? Estaria vivo? Estaria bem? Ouvíamos, ininterruptamente, a única rádio que sobrara no ar, na ansiedade por alguma notícia dele, e a notícia não vinha nunca. Há que se esclarecer que todos os que tinham condições de se comunicar com a rádio ficavam mandando notícias para suas famílias, mesmo naqueles tempos em que quase não havia telefone.
Onde estava o meu pai? Depois que tudo passou ficamos sabendo o que acontecera com ele: como não podia voltar para casa, ele e um amigo ficaram ajudando as pessoas das proximidades do serviço deles a atravessar aquele pedaço de enchente numa bateira que os dois tinham construído. Ele não conseguiu contacto com a rádio; não pode nos mandar notícias.
E os dias e as noites passaram, e nós continuávamos ouvindo a rádio sem parar. E, numa tarde, a enchente estava indo embora, e minha mãe tentava nos manter dentro de uma normalidade, sabe-se lá a custas de quais amarguras que engolia para que suas meninas não sentissem o medo que estava dentro dela. Veio a noite daquela tarde, e ela colocou a mesa como em todos os dias, e serviu a sopa, que naquele tempo se tomava sopa antes das refeições. E estávamos na sopa, quando ouvimos! Lá de baixo, de antes da curva da rua, do lugar onde ainda não poderíamos avistá-lo mesmo se fosse de dia, veio o assobio do meu pai! Ele tinha um assobio que era só dele, e que sempre assobiava quando estava quase chegando em casa, para que a gente soubesse que ele estava vindo. E então todas nós largamos a sopa e as colheres, e todas corremos desesperadamente para a rua, com o coração saindo pela boca de tanta emoção, pois sabíamos que ele estava chegando!
E no meio da escuridão foi aparecendo o farol da sua bicicleta, e ele assobiou de novo! Não preciso contar como estava o meu coração! Foi naquele dia que descobri que amava meu pai!
Blumenau, 27 de Setembro de 2002.
Urda Alice Klueger/ Escritora
Arquivo Dalva e Adalberto Day
Adalberto, que lindo! Estou aqui chorando, tanto pelas minhas lembranças, quanto por ver de novo um velho rádio, quanto por ver o campo do Amazonas daquele jeito - dias depois da enchente, quando voltávamos da aula no colégio São José, tinham acabado de achar uma das meninas, já podre, e não deixavam nós, crianças, nem chegarmos perto. Foi um terror a mais.
ResponderExcluirMuito obrigada por tudo,
Urda Alice Kluger
Excelente!
ResponderExcluirConfesso que estou muito emocionada. Sempre ficava imaginando como teria ficado o campo do Amazonas durante a enchente , e hoje vi essas fotos que me emocionaram. Lembro muito bem desses dias que ficaram marcados na minha infäncia por essa tragica enchente, e que a Urda muito bem descreve e nos faz reviver o passado como se ainda fosse o presente. Obrigada. Tere.
ResponderExcluirQ belo texto este de Urda Alice Kluger. Impossível não se emocionar!
ResponderExcluirUm abraço a todos.
Renata.
Belo e emocionante texto. Deve ser muito gostoso ter um pai para amar ou ter amado.
ResponderExcluirEm 1968 meu pai (falecido em 1999)saiu de casa. Por décadas fiquei esperando inutilmente seu "assobio".
Cada dia me apaixono mais por essa região, que além de linda por natureza, tem um dos povos mais legais e trabalhadores que vi por onde passei.
ResponderExcluirLindo texto, emocionante.
De repente a memória volta e te atinge como um soco violento na altura do estômago. A dor é real e o nó na garganta faz as lágrimas rolaram.
ResponderExcluirTambém tinha 8 anos, também estava no segundo ano primário, também estudava no Grupo Escolar São José e também fui no campo. Do lugar onde eu e algumas crianças nos enfiamos, escondidos dos adultos, podíamos ver um pedaço de pano preso no alambrado. Lá embaixo ainda estava alagado e todos tinham certeza que lá estava uma das crianças.
Tem horas em que penso: será realmente bom a memória voltar? Em outros momentos gostaria que ela voltasse completamente para poder lembrar dos rostos e dos nomes de todos os amigos e colegas da minha infância e quem sabe reencontrá-los todos numa grande festa como aquelas que participávamos no campo do Amazonas.
Saudades desse tempo que não volta e que já não tem mais um rosto para ser lembrado.
Meu nome é Carmen Salles de Oliveira Martins
ResponderExcluircsomartins@gmail.com