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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

- João Saldanha em Blumenau


Em histórias de nosso cotidiano, apresentamos o amigo Flávio Monteiro de Mattos é carioca de nascimento e blumenauense por opção.  Texto enviado por Flávio Monteiro de  Mattos.

Neste  ano (2017) comemorou-se o centenário do nascimento do João Saldanha, certamente o mais brilhante comentarista que o Brasil já teve e que, com sua visão aguda, anteviu os percalços que nosso futebol enfrentaria caso não mudasse a forma como era gerida. Certamente para ele, os 7 x 1 que a Alemanha nos impôs na última Copa era “pule de dez”, para parodiar uma de seus bordões. Vale lembrar que seu trabalho à frente da seleção brasileira durante as eliminatórias para a Copa de 1970 foi fundamental para a conquista do tri-campeonato, que de tão consistente não sucumbiu diante das mexidas políticas do Zagallo.

Entre as homenagens que lhe foram prestadas, a editora Lacre republicou o livro “Os Subterrâneos do Futebol”, por ele escrito em 1963, no qual relata com maestria os meandros do futebol brasileiro em sua passagem como treinador do Botafogo, time de coração que sob seu comando tornou-se campeão carioca no longínquo ano de 1959.
Leitura fácil e direta, João expõe suas agruras como técnico de um time que tinha jogadores da expressão de um Nilton Santos, Didi, Amarildo e o genial Garrincha, que não somente entortava os adversários no campo como os dirigentes do clube nas excursões que os times da época eram obrigados a fazer para pagar a folha de salários.
Entre tantas peripécias enfrentadas dentro e fora das quatro linhas, exalta Saldanha que nos mais de duzentos hotéis em diferentes lugares que o Botafogo atuou durante o período em que foi treinador, nunca recebeu sequer uma reclamação de um gerente de hotel de que estaria faltando uma toalha, sabonete ou cinzeiro de qualquer apartamento. Pelo contrário, foram incontáveis as cartas e ofícios existentes enviados pelos proprietários de hotéis ao clube, de elogios e agradecimentos pela preferência do estabelecimento e colocando-se a disposição, exceto de um episódio ocorrido em Santa Catarina e especificamente, Blumenau, que transcrevo a seguir (pág. 231).
“Faltou uma roupinha"
Saldanha

Só uma vez aconteceu uma coisa desagradável. Foi em Blumenau, Santa Catarina, onde fomos fazer uma partida amistosa. Entre a programação de homenagens que nos foram prestadas estava uma visita a certa indústria de tecidos e confecções de lã. Percorremos a fábrica e no final nos ofereceram um drinque acompanhado de um presente para cada um: um pequeno embrulho onde havia dois ou três artigos da indústria. Um par de meias, uma camiseta, etc.
Após a visita, retornamos ao hotel e íamos tomar o ônibus para Curitiba onde pegaríamos o avião para o Rio. Estávamos nos preparativos finais, da saída do hotel, quando chegou o gerente da indústria que visitáramos, e, muito discretamente, chamou-me a um canto e foi dizendo: O senhor desculpe, mas aconteceu uma coisa desagradável. Depois da visita demos por falta de uns artigos especiais de uma encomenda. Além de nós, ninguém mais esteve na “sala de acabamento” – aquela em que eu distribuí aquelas lembranças -, eu não quero afirmar nada... mas talvez alguém tenha levado... por engano ou...
Perguntei-lhe o que havia desaparecido e o homem explicou:
Não é coisa de importância nem de muito valor. É uma encomenda especial. Trata-se de um conjuntinho de lã para criança. É que amanhã é aniversário do neto do dono da fábrica e a senhora dele pediu que fizessem esse conjuntinho. Uma blusa e uma calcinha de lã creme, com um pequeno bordado na blusa. É coisa à toa. Do contrário, eu nem viria aqui incomodar os senhores. É uma coisa tão pequena que pode ter havido um “engano’, desculpou-se o homem, muito gentilmente.
Mão-leve no meio do “circo”
Perguntei ao tal homem se a tal roupinha de criança estaria na mesa grande, onde fora feita distribuição dos presentes, e ele respondeu que não. As peças desaparecidas estavam em uma prateleira grande que havia no fundo da sala de acabamento.
Eu tinha feito a pergunta para me certificar se houvera engano ou má fé. Afinal de contas, alguém poderia ter apanhado a coisa sem querer. Mas, evidentemente, fora roubo. E os que homens tinham feito tudo para nos agradar não estariam ali nos incomodando se não tivessem certeza que a roupinha fora mesmo furtada.
Pedi-lhe que tivesse um pouco de paciência, pois seria muito fácil achar a roupa de criança. Seria feita uma revista nas bagagens e, logicamente, se fosse alguém da delegação, encontraríamos o negócio. Mas avisei-lhe de que a “revista” não iria ser feita no hotel e expliquei por quê: “Se começássemos a batida ali, quem estivesse com a roupa poderia se desfazer com facilidade do troço.” Além do mais, eu estava profundamente interessado em encontrar o ladrão. Andávamos como circo, de cidade em cidade, e seria desagradável um “mão-leve” no meio.
Assim, embarcamos todos no ônibus. As bagagens eram pequenas. Em maioria, maletas de mão, pois a excursão era de poucos dias. Apenas um jogo em Curitiba e o tal jogo em Blumenau. Jogamos na sexta, em Curitiba, dia em que chegamos e, no domingo, em Blumenau, quando sairíamos de novo para o Rio, via Curitiba.
O homem estava de carro e pedi-lhe que acompanhasse o nosso ônibus até a saída da cidade, que era perto. Também havia a intenção de evitar algum vexame maior ou complicações com a polícia.
Mal saímos de Blumenau, uns quinhentos metros adiante na estrada, mandei parar o ônibus e descer todo mundo. O pessoal estranhou o fato. Resmungaram e coisa e tal, mas saíram. Quando todos desceram, eu expliquei o que havia e pedi que quem tivesse mala fechada fizesse o favor de abrir. Todos toparam imediatamente. Chamei o homem da fábrica que tinha chegado em seu carro e fomos abrindo as malas.
Pequeno descuido...
Numa delas estava, realmente, o conjuntinho de lã que havia sido roubado da fábrica. O dono da maleta não era nenhum jogador. A maleta pertencia a um jornalista de Curitiba, um tal de Ferreira, que havia se engajado na delegação quando passáramos na capital paranaense e que iria ficar em sua cidade quando de nossa passagem de volta para o Rio.
Explicou que, naturalmente, tinha havido um equívoco e apanhara, por descuido, outro embrulho. Houve um silêncio meio chato, mas o homem da fábrica estava satisfeito por haver recuperado o presente da criança. Depois de deixar bem claro que o rapaz descuidado não pertencia ao clube, embarcamos no ônibus e prosseguimos viagem.
A única medida tomada foi que achamos mais conveniente que o rapaz distraído tomasse outro ônibus. Um de “carreira” que havia de duas em duas horas, para voltar para sua cidade. Fornecemos-lhe a passagem e lhe desejamos boa viagem. O homem da fábrica, muito atencioso, ainda o conduziu de volta à Blumenau para que tomasse o ônibus no ponto inicial.
Não há condição. Jogador de futebol pode arrumar encrenca dentro de campo com a polícia ou um quebra-pau num cabaré ou num bordel, mas em mais de duzentos ou trezentos hotéis, sei lá, em que passei com a delegação de futebolistas profissionais, jamais tivemos um caso de “descuidos” ou coisas desse tipo.
A porta de vidro
Saldanha

São homens calejados e “vacinados” em relação a viagens. Não ficam no açodamento que é muito comum em certas delegações do chamado esporte amador, que viajam uma vez na vida e outra na morte e que tem dado os maiores vexames em hotéis e aeroportos.
Mas uma briguinha acontece de vez em quando. Uma vez em Lisboa, na porta do hotel, o Amarildo chateou tanto o Chicão que esse, perdendo a paciência, deu-lhe um “cacête” que o Amarildo saiu pela porta de vidro, deixando um buraco que nem desenho animado. Não se machucou, apesar de que o vidro tenha ido para o “vinagre”.
Entrou logo a turma do deixa-disso e a única providência cabível era pedir a conta do prejuízo ao gerente. Até que não ficou muito caro. O vidro foi colocado no mesmo dia e ficou em seis mil e poucos cruzeiros, no ano de 1959. Amarildo, a princípio, achou que o Chicão teria que pagar uma parte, mas por fim, achando-se culpado, pagou sozinho o estrago. Depois daquela, nunca mais chateou ninguém perto de uma porta de vidro.”
Esse livro é leitura obrigatória para os amantes do futebol escrito por aquele que foi o mais laureado cronista esportivo que o Brasil já teve que.


Os Subterrâneos do Futebol, João Saldanha, edição comemorativa, editora Lacre, RJ / 2017. 

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